Casal de cegos luta contra os obstáculos de uma vida às escuras
Manuela Silva é cega desde nascença e trabalha como telefonista. O companheiro, Marco Reis, aprendeu a viver num mundo às escuras aos 34 anos. O MIRANTE foi ver como vive este casal de cegos numa casa, em Benavente, sem água nem electricidade e da qual correm o risco de ser despejados.
Manuela Silva traçou na memória o mapa do percurso que faz diariamente de Benavente, onde vive, a Lisboa, onde trabalha como telefonista no Centro de Saúde da Graça. Primeiro apanha o autocarro e depois o comboio, em Vila Franca de Xira. “Aprendi o trajecto e lá me oriento. Às vezes perguntam-me se preciso de ajuda, mas agora, com a pandemia, há mais medo e menos gente nas ruas”, diz, acrescentando que esta nova realidade lhe faz lembrar os dias de chuva em que a pressa de fugir dos pingos não deixa tempo para alguém reparar na sua presença.
“Mas o maior problema é quando as ruas não têm pontos de referência, nem passeios, aí o mais provável é perder-me”, explica a mulher de 45 anos, que é cega desde nascença, enquanto se encosta na cama, onde passou toda a manhã por causa dos efeitos da segunda dose da vacina contra a Covid-19.
No quarto, a primeira divisão da casa onde mora com o filho menor de idade e o companheiro, Marco Reis, que também é cego, as paredes têm a cor do mundo de Manuela. “Estão pretas? É da humidade”, justifica, explicando que toda a vida não viu mais que vultos negros quando a claridade lhe permite fazer essa distinção. No discurso não se priva de conjugar o verbo ver. “Sonho como vejo o mundo. A preto e branco, com vultos sem rostos”.
Na casa situada no bairro da Azinhaga das Vinhas Velhas, a única claridade que vem é de uma nesga de sol que fura o pano que tapa a janela. “Está escuro?”, pergunta Marco Reis apontando para um pequeno candeeiro na cozinha. “Estamos sem luz e sem água há um ano, mas um vizinho cedeu-nos uma extensão. Damos-lhe 20 euros por mês para podermos carregar os telemóveis, para o miúdo ter internet e termos o frigorífico ligado”, conta.
É ao telemóvel que, de segunda a sexta-feira entre as 06h30 e as 19h00 - o tempo de a companheira ir e vir do trabalho - que Marco Reis vai ocupando o tempo. A tecnologia permite-lhe navegar na internet, ouvir notícias e as publicações dos seus “amigos” do Facebook. Quando está na hora vai tacteando o caminho até à cozinha, onde prepara as refeições. “Antes ia ao café, agora como está fechado quase não saio daqui”, comenta. Agora, só sai com o enteado para ir buscar água em garrafões de cinco litros, ou pôr roupa a lavar na lavandaria de rua, desde que a senhoria lhes cortou a água (ver caixa).
“A última coisa que vi foi o bloco operatório”
A perda de visão, aos 34 anos, foi um golpe duro para Marco Reis, que fazia a sua vida profissional ao volante de veículos pesados e era, ou melhor, ainda é apaixonado por motos. “Os primeiros três anos foram uma revolta enorme” e passados oito anos, às vezes ainda sente quando “meio a dormir” abre os olhos e espera ver a luz do dia.
“A última coisa que vi foi o bloco operatório, depois de ter levado um tiro no olho esquerdo no meio de uma briga entre um tio meu e um vizinho”, diz encostado ao armário da roupa sem uma porta.
Passou anos a fazer reabilitação social, numa associação em Lisboa, onde percebeu que se outros cegos conseguiam também iria conseguir ser autónomo num mundo às escuras. Perdeu-se e perdeu a conta às “cabeçadas” que deu em sinais de trânsito e outros obstáculos que surgem na via pública, mas ganhou coragem e deu mais um passo: inscreveu-se num curso de informática para invisuais.
Não foi amor à primeira vista mas os obstáculos
eram os mesmos
“Foi aí, por intermédio de uma colega, que conheci a Manuela”, conta. Não podemos dizer que foi amor à primeira vista, mas os feitios eram compatíveis e “os sonhos e as lutas os mesmos”. Marco Reis ainda luta por uma oportunidade de trabalho, mas se não for através de concurso público, como Manuela, tem pouca esperança que um privado o contrate. É com a Prestação Social para a Inclusão que ajuda no sustento da casa.
Quando o vírus SARS-CoV-2 entrou lá em casa, Marco Reis esteve duas semanas internado no Hospital Vila Franca de Xira a receber oxigénio. Em casa, Manuela e o filho, embora tenham testado negativo, tiveram que ficar confinados. A Câmara de Benavente assegurava-lhes as refeições principais, mas “não fosse o senhor do café que vinha e deixava o que se pedia à porta”, contam, tinham passado maus momentos, às vezes, sem uma gota de água para pôr na boca.
Esta família não recebe apoio social da Câmara de Benavente porque embora tenha sido visitada pelos serviços de acção social do município recusaram ajuda. “Felizmente não precisamos que nos dêem comida, não íamos aceitar injustamente”, revela Marco Reis, enquanto procura a abertura do congelador de três gavetas. “Veja, estão cheias”. O que precisam, diz, é de uma nova casa para morar.
Casal recebeu ordem de despejo
O casal de invisuais está na iminência de ser despejado da habitação onde reside depois de a proprietária do imóvel ter desencadeado uma acção judicial alegando ocupação indevida. Em causa está a celebração, entre as partes, de um contrato de promessa de compra e venda, mas cuja escritura nunca se concretizou, por falta de financiamento bancário e cujo prazo terminou em Dezembro de 2019. “Ficamos a arder com dois mil euros”, atira Marco Reis.
A mudança para esta casa aconteceu depois de a proprietária ter tido conhecimento que o casal precisava de um tecto para morar. “Pediu-nos 90 euros, nós dissemos que pagávamos 100, porque podíamos”, alega Manuela, garantindo que cumpriram com a obrigação “até a água e luz terem sido cortadas”. Informação contrária à da proprietária que alega que as despesas ficavam a seu cargo.
Na tentativa de encontrar uma alternativa, o casal concorreu ao concurso para atribuição de habitação social da Câmara de Benavente que ainda se encontra a decorrer. Contactada por O MIRANTE, a vereadora da Acção Social do município, Catarina do Vale, refere que uma vez que têm rendimentos o município se disponibilizou ainda para os ajudar a procurar habitação, pelo facto de serem invisuais e tendo em conta a pandemia e a saturação do mercado imobiliário naquele concelho.