O lento regresso à normalidade num lar onde o vírus entrou duas vezes e deixou vítimas
António Berto vê a filha entre as grades do portão, Mariana ainda reza para que o vírus não volte a entrar, José Afonso deixou de ter a mão da sua companheira de vida para segurar. No lar da Misericórdia de Alhandra reconstrói-se a normalidade, após dois surtos e 26 vidas a menos.
Mariana Barroca, 88 anos, ocupa um dos três bancos disponíveis no pátio do lar da Misericórdia de Alhandra, agora que o vírus já deixou aquelas bandas. O sol bate-lhe na cara e atrás de si os pássaros engaiolados cantam. “Ah como tinha saudades de um dia assim!”. A vida no lar começa a voltar lentamente à normalidade. As actividades lúdicas e de reabilitação vão sendo retomadas, mas ainda falta o mais importante: o grande portão de ferro abrir-se para que os utentes possam sair livremente e os familiares entrem para as visitas.
A Covid-19 não afectou tanto a idosa como atingiu outros dos mais de 50 utentes infectados durante o segundo surto que abalou o lar, em Novembro passado. Alguns dos que lhe eram mais próximos, sucumbiram à doença. “Foi o que custou mais. Ver tanta gente mal à minha volta e depois saber que iam morrendo. Tive medo, pensei que eu também ia”, conta. Perdeu três amigas e a mesa onde continua a fazer as refeições está mais vazia. Ainda hoje pensa como foi possível.
Neste lar a pandemia ceifou 26 vidas. E só agora que o surto foi dado como extinto e os reencontros começam a acontecer dentro da instituição, os utentes se apercebem que alguns dos seus companheiros de quarto, de mesa de refeição ou com quem iam ao yoga ou à fisioterapia, desapareceram. “Foi muito difícil depararem-se com mortes, por vezes diárias. Tentamos dar o melhor acompanhamento possível, mas a angústia continua presente”, diz a O MIRANTE a directora técnica do lar e psicóloga, Sónia Nascimento.
“Palpitei logo que nunca mais a ia ver”
Para José Afonso, a Covid-19 trouxe a maior perda com que já teve de lidar em 89 anos de vida. Num dia de Novembro largou a mão de Maria Romana e nunca mais a voltou a segurar. “Foi para o hospital e aí palpitei logo que nunca mais a ia ver. As saudades que tenho dela”, desabafa. Foram casados durante mais de 50 anos e José cuidou de Maria quando começou a perder a memória devido à doença de Alzheimer. Quando achou que já não era capaz de fazer tudo sozinho, mudaram-se juntos para o lar.
O corpo de Maria Romana seguiu num saco duplo directamente para o crematório, sem que a família a voltasse a ver, sem que José Afonso se pudesse despedir. “Não pude sair para ir ao funeral. Não pude estar lá para me despedir e isso custa muito”, diz. Está a tentar “fazer o luto de maneira diferente” e isso é “um desafio” para José Afonso e para todos aqueles que na instituição perderam alguém para a Covid-19, sublinha Sónia Nascimento.
Outro dos grandes desafios, refere a directora técnica, tem sido lidar com a perda de liberdade e autonomia. Alguns dos utentes “estavam habituados a sair da instituição para fazer as suas compras, passear, visitar as famílias” e, nesse sentido, pode dizer-se que se “perdeu qualidade de vida”. Era o caso de José Afonso que tinha por hábito passear pela zona ribeirinha da vila, ou de António Berto que está “saturado de ser prisioneiro”, sobretudo agora que já venceu a Covid-19 e está vacinado com as duas doses.
Reencontros só entre as grades do portão
É entre as grades do grande portão, no dia em que a reportagem de O MIRANTE visitou o lar da Misericórdia de Alhandra, que António Berto conversa com a filha, Marília Real. Não se tocam, mas as palavras sabem como beijos e abraços. É assim que se fazem os encontros há mais de um ano e, mesmo nos meses em que as visitas eram permitidas, placas de acrílico separavam as famílias dos utentes. Um método que a direcção está a pensar retomar nos próximos tempos, depois do aval da autoridade de saúde.
A directora técnica não tem dúvidas que “o isolamento e a perda do contacto com os familiares vai trazer consequências a médio ou longo prazo” que podem manifestar-se através do “aumento de quadros de ansiedade”. Mesmo que se vejam através de acrílico ou pela câmara de um telemóvel, “é uma tentativa de aproximação, mas não substitui o contacto físico”.
Na instituição, os utentes tentam, com a resiliência que nunca lhes faltou, voltar à normalidade. António Berto ocupa os seus dias entre a pintura, uma das suas paixões, o yoga e exercício físico transmitidos online pelo monitor. José Afonso gosta de observar em silêncio o amigo a pintar, agora que deixou de ter Maria Romana sentada na poltrona ao lado.
Mariana Barroca aproveita para pôr a conversa em dia com todos aqueles que não viu quando o lar virou uma espécie de hospital de campanha, sempre acompanhada pelo andarilho, onde mesmo não indo a lado nenhum transporta a mala com os seus pertences.
Os cuidados continuam a ser os mesmos e essa é a prova, sublinha Sónia Nascimento, que num lar “abalado por dois surtos e a tentar reerguer-se”, ainda “não se respira de alívio”. Os equipamentos de protecção individual continuam a fazer parte do dia-a-dia e todas as quintas-feiras um grupo de funcionários é testado. Mariana Barroca ainda reza para que a Covid-19 não volte a ali entrar.
Lar está a receber idosos deixados nos hospitais
Depois das quase 30 vagas deixadas por mortes causadas pela Covid-19 e outras que, por outras doenças, ocorreram nos últimos meses, este lar tem sido bombardeado com pedidos dos hospitais para acolher idosos. Uma triste realidade, na opinião do provedor da Associação do Hospital Civil e Misericórdia de Alhandra, José Alves.
Trata-se de idosos que já tiveram alta clínica mas que não têm para onde ir. “Vêm muito mais debilitados do que os utentes que estávamos acostumados a receber”. A Segurança Social é que está a financiar as vagas. A instituição já antes da pandemia tinha uma longa lista de espera para admissões na valência de lar residencial.