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O testemunho de quem sobreviveu à violência doméstica 
Isabel é mais uma das milhares de mulheres vítimas de violência doméstica que recomeçaram a sua vida mas as cicatrizes ainda doem

O testemunho de quem sobreviveu à violência doméstica 

Isabel começa a recuperar a vida normal mas as cicatrizes que a violência deixou são difíceis de apagar. Fala delas para se libertar, desiludida com a justiça que não a levou a sério. O caso acabou arquivado tal como milhares de outros. Ao ex-companheiro foi dada permissão para estar com o filho, que cresceu num ambiente de brutalidade.

Começou por insultos e ameaças com a mão levantada, até ao dia em que lhe atirou com o telemóvel à cara e a pontapeou. Chegou a partir-lhe duas costelas e deixá-la a sangrar no fundo das escadas. Um dia, depois de mais uma agressão, Isabel agarrou no filho ao colo e saiu de casa, para nunca mais voltar. As cicatrizes ainda doem, mas quis partilhar o seu testemunho que saiu como uma espécie de libertação, para que o assunto não caia no esquecimento. E, quem sabe, “impedir que outra mulher sofra” o que ela sofreu.
Sentada à mesa, na casa que arrendou em Benavente para viver em paz com o filho depois de terem passado anos num inferno, recua às suas piores memórias. “Ainda custa falar disto. Começou depois de o nosso filho nascer, com insultos. Dizia que não prestava para nada e não queria que eu falasse com os vizinhos, muito menos com a minha família”. Nesta altura Isabel não sabia que já estava a ser vítima de violência doméstica e deixou-se ficar.
“Tudo começou a piorar quando se meteu em más companhias. Eu quase virei a amante, em vez de ser a mulher. Gastava tudo fora e em casa trancava os armários para não comermos. Chegava cada vez mais tarde e discutíamos porque eu não achava bem que com um filho bebé chegasse a casa às três da manhã. Foi aí que começou a bater-me”, conta.
A violência passou a ter livre trânsito dentro daquela casa. Era só apetecer ao agressor. Porque a mulher falava demais, porque tinha bebido uns copos, porque as discussões só terminavam como ele queria. Uma vez, depois de Isabel se recusar a ter relações sexuais, atirou-a para cima da cama meteu-lhe os dedos na boca e apertou-lhe o pescoço até não conseguir respirar. Tentou molestá-la sexualmente.
Noutra ocasião, aquela que foi a gota de água para a mulher de 36 anos: sem que houvesse tempo para discussões atirou-a pelas escadas abaixo “até ao último degrau”. Deixou-a a sangrar, caída, imóvel e saiu de casa. Quando arranjou forças Isabel pegou no filho, na altura com quatro anos, e num carrinho de bebé meteu bens de higiene e algumas roupas. Fez-se à estrada a pé, “sempre a olhar por cima do ombro, cheia de dores e com o filho ao colo”. Só parou quando se encontrou na ponte de Benavente com uma irmã e o seu pai. “Caí nos braços dele, desmaiada”.

Mais um caso a engrossar
a lista dos arquivados
Depois de apresentar queixa o processo seguiu para tribunal. Ao arguido, lê-se no despacho judicial, foi aplicada a medida de coacção de Termo de Identidade e Residência, a mais branda de todas. No julgamento de um crime que ocorreu repetidas vezes dentro de quatro paredes, sem testemunhas por perto, a não ser o filho menor de ambos, que assistiu a tudo, não houve condenação. O caso foi arquivado.
A violência doméstica foi o crime responsável pela abertura de mais inquéritos no Ministério Público (MP) em 2019, com mais de 34 mil processos. De acordo com os dados que constam do Relatório Síntese do MP foi deduzida acusação em 5.264 casos e arquivados 19.612 inquéritos. Em 2018, dos quase 30 mil inquéritos a casos de violência doméstica, cerca de 20 mil foram arquivados.
Isabel nunca teve um aparelho de teleassistência ao qual pudesse recorrer caso voltasse a ser atacada. O que veio a acontecer. O ex-companheiro já tentou arrombar a porta de casa que agora mantém fechada com um cadeado improvisado. “Com o medo que ele entre e me parta a casa toda às vezes ainda durmo atrás da porta com o telemóvel na mão”, conta.
O processo de Isabel ficou fechado em 2019 e embora não tenha conseguido “a justiça que queria”, conseguiu voltar a viver e a gostar de si “apesar do medo”. A pequena casa caiada de branco está cheia de amor por dentro que se vai fortalecendo, longe da violência vivida entre outras paredes. “Hoje penso como  estive com uma pessoa daquelas. Não era amor. E nunca foi um pai”.
Em 2019 foi uma das 38 vítimas de Benavente apoiadas pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) que presta ajuda nestes casos ao nível da informação, sensibilização e até mesmo no acompanhamento na apresentação da queixa, depoimentos e na ida ao hospital ou ao gabinete de Medicina Legal.

Filhos da violência não têm estatuto de vítima

APAV defende que uma criança deve ser considerada vítima de violência doméstica quando é exposta ao crime e não apenas quando é o destinatário principal

Uma vez por semana, Isabel continua a entregar o menor ao ex-companheiro, porque é o pai e o tribunal assim o determinou. Existe uma queixa-crime por violência doméstica ao menor, que foi alvo de inquérito por parte do Ministério Público e acabou arquivada. Isabel nunca está presente nas visitas, por medo. É  a avó materna que faz esse acompanhamento.
Mas estes encontros semanais deixam a criança, agora de sete anos, inquieta. O menor lembra-se de várias agressões à mãe, que tem esperança que um dia se vão apagando da memória do filho. Vê-o sofrer com medo, ansiedade e a desenvolver quadros recorrentes de agressividade. “Revolta-se. Atira com tudo em casa. Bate em mim, na minha irmã e na minha avó enquanto grita: não quero ir para o pai”.
Em Julho de 2020, mais de 45 mil defenderam, através de petição pública, o estatuto de vítima a crianças inseridas em contexto de violência doméstica. Desta forma estão a obrigar o Parlamento a voltar a discutir o tema, depois de, em Dezembro de 2019, os projectos de lei do Bloco de Esquerda e do PAN nesse sentido terem sido chumbados.
A Associação de Apoio à Vítima (APAV) defende que uma criança deve ser considerada vítima de violência doméstica quando é exposta ao crime e não apenas quando é o destinatário principal da violência exercida mas criar um estatuto autónomo não é necessariamente a solução.

Linhas de apoio à vítima

Linha de informação às vítimas de violência doméstica- 800 202 148
APAV - Gabinete de apoio à vítima de Santarém - 243 356 505

O testemunho de quem sobreviveu à violência doméstica 

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