Retalhos administrativos
A reforma administrativa que levou à fusão de freguesias soube a pouco. Devia também ter-se aproveitado o ensejo para extinguir municípios. Há concelhos que nem freguesias já deviam ser e que apenas subsistem porque somos, de facto, um país pobre, com problemas pavorosos de trabalho. Somos dos poucos países na Europa onde o trabalho não evita a pobreza.
É comummente aceite que em Portugal os assuntos raramente são examinados em profundidade. Fica sempre a sensação de que é sempre necessária mais uma discussão, mais um debate, mais um estudo, mais um seminário, ou mais um programa televisivo. Nada mais errado. Discutimos ad nauseam e decidimos sine die.
O nosso atraso endémico não nos incomoda nada, desde que nos ponham 20 euritos no bolso e nos proporcionem uma boa discussão. Criticamos e opinamos sobre tudo, desde os rissóis de camarão à existência de vida em Marte. Decidir é que é uma grande chatice.
Por exemplo, todos sabemos que a nossa administração pública é ineficaz, tecnologicamente antiquada, repleta de ineficiências - com organismos totalmente dispensáveis - e humanamente descapitalizada, que se traduz numa aflitiva privação de competências técnicas. Convive-se com o supremo paradoxo de existirem excessivas aptidões em áreas desnecessárias e a absoluta ausência das mesmas em áreas urgentes.
Grosso modo, é como se durante dezenas de anos tivesse sido fundamental produzirem-se “salchichas”, tendo-se, no entanto, constatado que as ditas são presentemente totalmente inúteis; só que, tenazmente, continuamos a produzir essas mesmas “salchichas”, não obstante as nossas necessidades terem mudado. Não faz mal, continuamos todos a fazer “salchichas” e alguém que resolva o problema.
Parece simples de alterar. É e não é. É, porque já existem mais estudos do que estrelas no céu e seria muito fácil a sua implementação; não é, porque estamos em Portugal e porque mexer em áreas de conforto conflitua com interesses instalados, incita ao descontentamento e impossibilita a angariação de votos.
Porém, a administração pública não são apenas os serviços centrais centralizados, mas também 308 municípios e 3092 freguesias, quantitativos manifestamente exagerados, não apenas para a nossa realidade territorial e humana, mas também para os nossos parcos recursos financeiros.
Prosseguimos com disfuncionalidades graves que resultaram das alterações profundas do mapa humano. As migrações para o exterior e para o litoral que continuam a ocorrer diariamente, aumentam os anacronismos entre as divisões administrativas do passado e a realidade humana do presente.
Temos preguiça e manha para não alterarmos nada. Insistimos em não mexer uma palha e apenas progredimos quando nos obrigam. Sempre no limite.
Pelos piores motivos, foi o que sucedeu neste domínio com a denominada “Troika”, a qual nos impôs a primeira - e atrasada - reforma administrativa dos últimos anos, obrigando à fusão de freguesias um pouco por todo o país. Mas soube a pouco. Devia também ter-se aproveitado o ensejo para extinguir municípios. Na verdade, existem concelhos que nem freguesias já deviam ser e que apenas subsistem porque somos, de facto, um país pobre com problemas pavorosos de trabalho. Somos dos poucos países na Europa onde o trabalho não evita a pobreza. Donde, por um lado, para alguma da indigente política Portuguesa, ter mais municípios e freguesias à disposição é sinónimo de se poderem distribuir mais cargos remunerados; e, por outro, para algumas pessoas, constitui um modo de vida que lhes pode possibilitar, além de notoriedade pública, um salário melhorado, salário esse que lhes permite fugir a uma vida mais remediada.
Torna-se, pois, fundamental uma actualização territorial das áreas municipais, reduzindo-se significativamente o número de Municípios, único caminho para a criação de massa crítica - pessoas que desenvolvem um pensamento próprio -, para a possibilidade de uma gestão pública moderna e criativa e para a prossecução de uma genuína política de proximidade. Não existe subsidiariedade sem massa crítica. E esta não existe sem pessoas.
Como estamos em ano de eleições, surgem já movimentos alegadamente espontâneos de populações, bem como de decisões governamentais, que pretendem reverter o pouco - conquanto no caminho certo - que foi feito no tempo da “Troika”, separando de novo as Freguesias já antes agregadas. Tudo muito tristemente Português. Tudo muito pequenino e arrumadinho. Tudo muito cinzento.
Se pensarmos que foi até um antigo presidente do município de Lisboa que, previamente à chegada da “Troika”, iniciou um projecto de reforma administrativa, fundindo freguesias na capital do país e que, neste momento, é precisamente um governo chefiado por essa mesma pessoa que estimula e instiga a reversão dessa mesma fusão de Freguesias, teremos, inconfundivelmente, uma fotografia esplêndida do provincianismo e da impudência de que somos feitos.
Reverter reformas é olhar para o passado e não para o futuro. Reverter é mantermo-nos no trilho da pobreza tranquila que nos distingue. Reverter não acrescenta nada à dignidade das nossas populações; antes as engana com futuros que não existem.
Reverter, mais do que populismo, é um paradigma de má governação.