Ana Fernandes leva a vida a ver passar comboios
Ana Paula Fernandes foi criada junto à linha de comboios e aí criou os seus filhos também.
É guarda de passagem de nível, tal como a sua mãe era, e garante que esta não é uma profissão mas sim um modo de vida. Ferroviária com muito orgulho, assume que é uma paixão ver passar os comboios.
A campainha começa a tocar na passagem de nível das Assacaias, concelho de Santarém, e Ana Paula Fernandes, a guarda, apressa-se a fechar a cancela que impede a passagem de automóveis. Coloca-se junto à linha, tão próximo que assusta quem não está habituado à imponência do comboio, e levanta a bandeirola vermelha, enrolada, sinalizando ao maquinista que está tudo bem.
O comboio passa e a guarda de passagem de nível abre a cancela, ficando atenta aos carros que passam. Perde a conta às vezes que abre e fecha aquela pesada cancela, durante cada turno.
Ana Paula Fernandes tem 56 anos e desde sempre se lembra de os seus dias serem a ver passar comboios. Tinha 21 anos quando começou a sua actividade de guarda de passagem de nível, mas a experiência de viver ao lado da linha era já antiga uma vez que a sua mãe tinha a mesma profissão.
Natural da Ribeira de Santarém, Ana Paula Fernandes conta a O MIRANTE que entrou para guarda de passagem de nível por um acaso. “Era apenas para colmatar a falta de pessoal que tinham naquela altura, não era para fazer isto muito tempo”. A vida trocou-lhe as voltas e já lá vão 35 anos desde o primeiro dia que começou a trabalhar.
Sabia, do que via a sua mãe fazer, o que era a profissão. Talvez por isso não tenha sido difícil habituar-se à vida que leva apesar de admitir ser complicada. “A minha vida foi e continua a ser feita em função da minha profissão. Em criança vivi sempre perto da linha. Depois de casar fui viver para Almeirim mas criei os meus filhos aqui. Era só eu, eles e os comboios”, relembra Ana Paula Fernandes.
Responsabilidade sem reconhecimento
Ana Paula considera o seu dia muito monótono e ingrato. “É um trabalho com grande responsabilidade, tenho a vida de outras pessoas nas minhas mãos mas é uma profissão desvalorizada”, assume.
Com orgulho em ser ferroviária, esta mulher não esconde a tristeza de ser muitas vezes maltratada pelos condutores que ali param. “Só querem passar e nem pensam que estou a zelar pela segurança deles. Há muita ingratidão e acham que podem insultar-me só porque sou uma mulher ali sozinha”, diz Ana perdendo o sorriso que a acompanhava desde a chegada da jornalista de O MIRANTE.
O trabalho é exigente, não só do ponto de vista físico como também psicológico. O desgaste é grande, mas Ana Paula confessa que quando teve oportunidade para sair e ir fazer outra coisa não aceitou.
Ver passar comboios é o que gosta de fazer, faça chuva ou sol, seja noite ou dia. “Não há nenhum turno que custe mais, apesar de ter de estar acordada a noite toda ser sempre um pouco mais complicado. Mas tudo se faz. Nem posso dizer que tenho medo de estar aqui. Já apanhei alguns sustos, mas nada de grave”. Um modo de vida absorvente que deixa marcas até nas horas de descanso: “Entranha-se de tal forma em nós que às vezes estou em casa a dormir e se ouvir o comboio acordo sobressaltada a pensar que o deixei passar sem fechar a cancela”.
Passagem de nível à antiga
A passagem de nível onde Ana Paula trabalha evoluiu pouco desde que começou a trabalhar. A cancela continua a ser fechada e aberta de forma manual, pela força dos braços de quem lá trabalha.
“A lanterna que utilizamos para sinalização à noite deve ter sido o que mais evoluiu. Antigamente era a petróleo. Deve ter sido a maior evolução desta passagem de nível”, diz em tom de brincadeira.
A guarda enaltece, no entanto, o facto de o sistema de segurança estar mais evoluído. Hoje o sinal sonoro dispara automaticamente e Ana sabe que tem alguns segundos para fechar a cancela. É esse sistema de segurança mais avançado e toda a modernização da linha que vai fazendo desaparecer a profissão de Ana Paula.
Profissão em extinção
A profissão está em vias de extinção e Ana tem essa noção. Assume até que, de um modo geral, talvez já não faça sentido continuarem. “Se tudo correr bem, se a máquina não falhar, a cancela fecha e abre sozinha, o sinal dispara e não estamos aqui a fazer nada. O problema é quando isso não acontece”, revela.
A guarda não esquece que os acidentes acontecem e que nessas situações só as guardas de passagem de nível podem fazer alguma coisa. “Se alguém cair na linha, se um carro se despistar, pode não activar o sinal e o comboio não vai saber que tem de parar. É por isso que somos essenciais. As máquinas são óptimas quando complementadas com o humano”.
Na altura em que tiver de sair, seja por extinção do trabalho seja pela reforma, vai ficar triste porque aquela é a sua vida, mas garante sair de cabeça erguida e orgulhosa por saber que deu sempre o melhor de si.