“É preciso trabalho exigente para se chegar longe”
Miguel Arraiolos, 33 anos, é um dos nomes grandes do triatlo português. Participou nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, alcançou vários títulos internacionais e são inúmeras as provas em que participou com as cores do Benfica e da selecção nacional por esse mundo fora. O atleta de Alpiarça fala a O MIRANTE das privações a que um atleta de alta competição se sujeita e presta tributo à terra natal e a quem o projectou na modalidade.
Como começaste o triatlo?
Comecei quando a minha irmã andava na natação com o professor António Jourdan, que também era treinador de triatlo e levava os miúdos a provas. Um dia convenceu-me a experimentar. Comecei a treinar e a minha primeira prova apurava os melhores para um encontro nacional. Apurei-me logo à primeira, fiquei motivado e quis estar entre os melhores.
Quando começaste foi logo em competição a sério?
Quando experimentei o triatlo já tinha 15 anos e estava num escalão onde ou treinava e era bom ou não valia a pena competir. O professor Jourdan era muito exigente. Passado um ano subi a júnior e tive que dar o salto. Foi tudo muito rápido, comecei logo a competir a um nível alto.
Sentes que te roubou tempo de ser adolescente?
Claro que sim. Para me dedicar só ao triatlo tive que deixar o futebol. Quando comecei a ser chamado à selecção e a ir a campeonatos da Europa e do Mundo e aos estágios de Verão, em vez de passar tempo com os amigos e de sair com eles à noite tinha que treinar ou ir para provas ou estágios.
Como se materializam os sacrifícios de ser atleta?
No início um dos sacrifícios foi meter de parte algumas coisas próprias da adolescência. No dia-a-dia, é o facto de ocupar muito tempo e do tempo livre ser para descansar porque se treina o dia todo. A alimentação também é um sacrifício, mais na altura das provas. Temos que comer bem e há momentos de fraqueza psicológica, especialmente quando os amigos combinam ir jantar e tu não podes comer o que quiseres porque tens uma prova ou um treino importante. Comes arroz com frango e está bom! (risos)
O que é comer bem?
É não comer muitas gorduras. Se tiver um treino no dia a seguir e comer algo que não é muito saudável (fast-food, bolos, comida com muita gordura) vou sentir no treino. Vou ter dores de burro ou dores de barriga. Num treino com muita intensidade, em que temos que ter o coração com as pulsações muito altas, se o sangue correr cheio de porcarias vou sentir-me mal.
É difícil conciliar três técnicas diferentes, como são a corrida, a natação e o ciclismo?
O mais difícil é a natação. Toda a gente sabe correr e pedalar e nem toda a gente sabe nadar. Para quem não sabe nadar tem que aprender primeiro e só depois é que começa a treinar.
Onde sentes mais dificuldade?
Na natação. Sempre fui de bicicleta para a escola e sempre corri nos corta-matos escolares, fazia algumas provas de atletismo aqui na terra. Na natação é que já comecei mais tarde, cheguei a ter aulas técnicas antes de começar a treinar a sério.
Cumpres as rotinas de treino e de alimentação à risca?
O treino cumpro 95%. Há alturas em que me sinto mais cansado do que devia e faço um treino mais ligeiro. Na alimentação sou eu que faço o meu plano porque nunca me senti confortável com planos feitos por nutricionistas. Sei o que tenho que comer para me sentir bem, por isso prefiro fazer e gerir eu. Saio muitas vezes da linha. Há muitos dias que vou jantar fora com os amigos ou com a namorada. Em casa faço um bolo de vez em quando e se calhar não devia. Mas consigo gerir para me sentir bem.
É fácil para um atleta ter patrocínios?
Em Portugal não é fácil. Para se ter patrocínios em Portugal é preciso ser mesmo muito bom e estar de forma constante no topo. Eu digo em Portugal porque sei como funciona lá fora. Conheço muitos atletas que são patrocinados pelas grandes marcas em vários desportos. O lote é pequeno.
Nos clubes onde estiveste sempre te sentiste apoiado?
Sim. Já estou no Benfica há 8 anos e se não fosse o clube não praticava triatlo tanto tempo sem ter que encontrar outra fonte de rendimento. O Benfica ajudou-me a apostar no triatlo e na qualificação olímpica sem me preocupar em ter de encontrar um emprego para pagar a renda. Por isso é que cumpri o objectivo da qualificação olímpica. O Benfica foi a maior ajuda que tive.
Eras adepto do Benfica?
Era mais ligado ao Sporting por causa dos meus amigos e dos meus avós. Mas quando somos profissionais somos do símbolo que trazemos ao peito. Quando fui para o Benfica senti que ganhei uma nova família. Sempre fui ver os jogos do Benfica e adorava. Sempre apoiei o Benfica em tudo. Tornou-se uma família e se não fosse assim não chegava onde cheguei.
Qual foi o ponto alto da tua carreira?
A qualificação para os Jogos Olímpicos. Sabia que era o topo, mas não achava possível alcançar. Em júnior sonhava com os europeus e os mundiais. Quando subi de escalão, para sénior, comecei a encarar as coisas de outra maneira. Quando comecei o ciclo olímpico senti que era possível e quando consegui a qualificação foi o melhor momento da minha carreira.
O que sentiste quando estiveste nos Jogos Olímpicos?
A prova em si não foi nada de especial. Era uma prova igual às outras. Passei dois anos a competir com aqueles atletas e em provas de dificuldade semelhante. Comecei e acabei a prova a pensar que foi mais uma que fiz. Dei o meu melhor, como sempre. Senti-me especial foi no envolvimento, estar com a comitiva olímpica, o programa olímpico, a aldeia olímpica. Senti que estava ali com a sensação de missão cumprida.
Vais tentar a qualificação para Paris 2024?
Já não vou tentar a qualificação para 2024. Estou a trabalhar para as distâncias longas. É uma nova carreira que é muito explorada, e cada vez mais. A distância longa é mais ou menos o dobro da distância olímpica. Nos próximos anos vou dedicar-me a esta vertente e tentar a qualificação para os europeus e mundiais.
E fazer uma prova de Iron Man?
Vou fazer. Não está nos meus planos treinar para competir no circuito do Iron Man. Vou focar-me na distância longa. Mas vou fazer um Iron Man para fechar o ciclo.
Qual foi prova mais difícil em que já participaste?
Onde sofri mais foi numa prova de qualificação olímpica em Yokohama (Japão), em que o troço de ciclismo era composto por muitas curvas e não havia uma recta com mais de 200 metros. Era curva e contracurva. Nessa prova não houve grupos, íamos todos na roda uns dos outros, numa fila gigante porque era impossível passar para o lado porque estavas sempre a curvar. Sofri muito para tentar ir na roda do atleta da frente e foram 40km a sofrer para não perder essa linha.
Qual foi a água mais suja onde já entraste?
Na América do Sul. Esticava o braço e não via o cotovelo. Se entrasse água para a boca era só terra. Havia paus e troncos no meio da corrente. Se alguém mergulhasse desaparecia completamente.
Quem é o teu maior apoio quando estás em baixo?
Há algo muito positivo em mim, que é conseguir focar-me sempre mais no positivo do que no negativo. Também tenho a sorte de ter bons amigos e uma boa namorada. No fim do dia, quando chego a casa, basta falar com ela ou pegar no telefone e ligar para os meus amigos ou para a minha família. Nem preciso de falar do que correu mal, basta falar de outra coisa qualquer que fico a sentir-me bem. É preciso chegar ao fim do dia e saber desligar.
Uma idosa e um atleta pelos ares
Qual foi a coisa mais bizarra que te aconteceu em prova?
Foi na minha primeira prova internacional, um europeu na Grécia. Saí da água para o ciclismo e ia tentar apanhar um grupo que saiu da água primeiro. Na primeira recta há um fosso entre mim e o grupo. Havia outro atleta à minha frente cerca de 30 metros e o grupo ia aí a 20 metros dele. Depois do grupo passar vejo uma idosa de bengala a atravessar a estrada. O percurso era fechado, não sei como entrou ali. Quando ela chega ao meio da estrada vem o atleta que ia à minha frente e embateu nela. Foi a bengala, a senhora, ele, a bicicleta, tudo pelo ar... Quando passei nem liguei porque ia com a adrenalina da prova. Mas no fim comecei a pensar e, realmente, a imagem de uma bengala a voar para um lado e uma bicicleta para o outro foi bizarro.
Já tiveste muitas quedas?
Tive algumas. Não por minha culpa muitas vezes. Vamos no meio do grupo e às vezes basta um toque e caem logo os 20 que estão atrás. Por culpa minha já tive duas quedas que comprometeram um bom resultado. Nos treinos é mais raro cair. Porque depende mais de nós. Já tive uma em que parti a clavícula. Foi em 2008. Caí sozinho. Parti a clavícula e tive que ser operado. Ainda tenho a cicatriz. Fora isso tive uma ou outra mas que não foram graves.
Se não fosses triatleta serias o quê?
Provavelmente continuava ligado ao desporto. Antes de ser triatleta já fazia desporto, já gostava de desporto. Os meus pais eram desportistas, faziam ginástica. O meu pai chegou a ir a campeonatos nacionais e a ser campeão nacional. Acabaram por continuar a ser professores de ginástica e ligados ao desporto. A minha mãe também é técnica de desporto da câmara e presidente dos Águias.
Estás a acompanhar as equipas jovens do Benfica como treinador. Gostas mais da vertente de treinar ou da competição?
Neste momento, o melhor que posso ter é essa vertente de treinador. Já tive a minha altura de competir e treinar. Agora estou noutra fase. Continuo a ter objetivos de excelência nas distâncias longas, mas desde há uns anos quis estar ligado à parte do treinador de triatlo. Passei 15 anos em competição, sinto-me como peixe na água e é uma mais-valia para o grupo ter-me como treinador porque arranjar alguém com mais experiência é difícil. O meu objectivo é passar a minha experiência para os miúdos.
“Tenho muito orgulho em ser de Alpiarça”
O que representa Alpiarça para ti?
É a minha terra. Foi onde conheci o desporto e o que faço agora. Foi onde conheci o triatlo e onde tive o meu primeiro treinador, o Jourdan. Foi onde me deram a conhecer o mundo do desporto. Quando competi nos Jogos Olímpicos e mesmo noutras provas internacionais senti um grande orgulho de ser alpiarcense e um dos meus objectivos é levar Alpiarça sempre comigo. É uma forma de agradecer. Se não fosse essa aposta não teria feito o que fiz e talvez estivesse noutra vertente. Tenho muito orgulho em ser de Alpiarça.
O professor Jourdan foi muito importante para ti?
Claro. Foi ele que me deu a conhecer o triatlo, que foi exigente o suficiente para fazer o que fiz e para chegar onde cheguei. Se ele tivesse sido meiguinho eu também era meigo a treinar e as coisas assim não funcionam. É preciso trabalho exigente para se chegar longe. Foi ele que me convenceu e me levou.
Como lidaste com a notícia do falecimento dele?
Foi numa prova em Quarteira (Algarve). Ele estava presente com o grupo de triatlo de Alpiarça, eu já estava no Benfica. Ele formou um grupo grande com muitos atletas que se qualificaram para representar a selecção, só de Alpiarça eram seis ou sete atletas. Quando fomos para o segundo dia de prova soubemos. A meio da prova de juniores. Todos soubemos menos os miúdos porque estavam a correr. Só souberam depois da prova.
Foi complicado lidar com essa situação?
Foi. Era uma pessoa muito querida para mim. Foi mais complicado para os miúdos que estavam a treinar com ele. Ficaram muito perdidos. Eram um grupo muito feliz e muito motivado pelo triatlo e por ele. Era um grupo espectacular. Quando aconteceu ficaram todos muito perdidos. O meu pensamento foi mais neles. É um grupo que sempre conheci bem, é outra geração, mas sempre tivemos ligação. O resto da época não correu da melhor maneira e o espírito que eles tinham nunca voltou ao que era. O colega dele ainda os tentou agarrar, mas acabaram por desistir.