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Manuel Faria: um árbitro que marcou gerações
Manuel Faria tem 70 anos e é um dos árbitros mais reconhecidos da região

Manuel Faria: um árbitro que marcou gerações

Manuel Faria, um dos árbitros mais prestigiados da região, foi homenageado pela sua dedicação de mais de quatro décadas à arbitragem. Em entrevista a O MIRANTE conta como tudo começou e os episódios que viveu.

Manuel Faria, 70 anos, é um dos árbitros mais reconhecidos da região. Quatro décadas depois continua ligado à actividade como observador, formador e coordenador da Comissão Técnica do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Santarém (AFS). Nasceu na Lamarosa, concelho de Torres Novas, onde viveu até se mudar para o Entroncamento quando aos 15 anos foi trabalhar como aprendiz na CP – Comboios de Portugal. As suas maiores referências são os avós por lhe terem transmitido valores e princípios que ajudaram na educação dos seus dois filhos e que ainda hoje faz questão de ensinar aos três netos.

Aos 18 anos apresentou-se para cumprir serviço militar e rumou ao distrito de Tete, em Moçambique, para combater na guerra do Ultramar. São tempos que recorda com saudade e que, assegura, foram muito importantes na formação do seu carácter. Mais tarde regressou à CP onde evoluiu até se tornar técnico oficial e liderar uma equipa com mais de 60 pessoas.

Antes de se tornar árbitro, aos 30 anos, foi jogador de futebol, mas a paixão pelo apito falou sempre mais alto. Ao longo de 13 épocas, Manuel Faria assumiu uma postura confiante, tolerante e amigável, sempre pautada pelo diálogo e nunca pelo conflito. Arbitrou na segunda categoria do futebol nacional ficando a mágoa por não ter chegado ao topo. A sua dedicação à arbitragem mereceu o respeito e consideração do Conselho de Arbitragem da AFS e da União de Núcleos do Distrito de Santarém, que lhe organizaram recentemente uma homenagem. A entrevista de O MIRANTE a Manuel Faria realizou-se no complexo desportivo do Entroncamento, minutos antes de se iniciar mais um treino de árbitros, liderado pelo seu filho Hugo Faria.

Como foi a sua infância?

Nasci na Lamarosa e tive uma infância muito feliz. Nunca me faltou nada. Tenho um irmão cinco anos mais novo, que nasceu com problemas de saúde. Como a minha mãe tinha que ir com frequência ao médico fui criado pelos meus avós. O que sou, devo-lhes, principalmente à minha avó que era uma santa.

Emociona-se sempre que fala dela?

Sim, porque era uma mulher com muitos valores e prestável. Só aos 15 anos, quando comecei a trabalhar, é que voltei para casa dos meus pais. Sou um privilegiado pelos avós que tive e por isso sempre expliquei aos meus filhos, e agora aos netos, a importância de termos exemplos e referências nas nossas vidas.

Porque não continuou os estudos?

Era bom aluno mas aos 14 anos o meu pai mandou-me fazer à vida. E em boa hora o fez, porque quando cumpri o serviço militar e fui para o Ultramar (distrito de Tete) já era um homem e ajudei muita gente a integrar-se. A tropa foi marcante na minha vida, porque deu-me confiança e capacidade de superação.

Nessa altura já assumia o seu perfil de líder e conciliador?

Consegui sempre angariar simpatias, mesmo na escola. Cheguei a ter guarda-costas para me protegerem dos mais velhos. Sempre gostei de gerir conflitos e de resolver problemas.

Alguma vez um professor lhe mostrou um cartão amarelo ou vermelho?

Estive para ir para a rua umas duas ou três vezes, mas safei-me sempre (risos). Os professores eram muito rigorosos e cheguei a levar umas raquetadas. No entanto, tentava sempre ter um comportamento exemplar.

Quando surge a paixão pelo desporto?

Tive a sorte de na Lamarosa ter um padre que gostava muito de futebol e que comprou equipamentos para jogarmos. Todos os domingos fazíamos torneios e isso incutiu-me um espírito competitivo muito grande. O meu percurso como jogador passou principalmente pelo Ferroviários e pelo Lamarosa, onde cheguei a ser campeão distrital. Joguei em quase todas as posições, mas aos 30 anos arrumei as botas para me dedicar à arbitragem.

Como era o seu comportamento como jogador?

Para ter noção, nunca me mostraram um cartão e por isso também sempre achei interessante a arbitragem. Fui tirar o curso em Santarém e o resto é história.

Fale-me um pouco dessa história…

Comecei por fazer os seis anos obrigatórios no futebol distrital. Depois tive a sorte de integrar a equipa do Gama Henriques, que me começou a incutir alguns princípios importantes na arbitragem. Formei a minha equipa, subi à 3ª divisão nacional, tendo chegado à 2ª categoria onde estive quatro anos.

Tem mágoa por nunca ter chegado ao topo?

Tenho, mas a culpa foi minha porque comecei muito tarde a apitar. Aos 45 anos já não tinha capacidade física para arbitrar jogos desse nível. Hoje, começar a carreira de árbitro aos 30 anos é muito tarde.

Para um jovem não é demasiado exigente arbitrar jogos?

As coisas mudaram muito e os árbitros têm outro acompanhamento. Mas é verdade que, nas camadas jovens, os pais vivem muito intensamente a possível carreira dos filhos e tornam-se mal educados. É sempre mais difícil lidar com os pais quando deviam ser eles a dar o exemplo.

“PAIS SÃO MAL EDUCADOS”

Como era a sua relação com os jogadores?

Nunca discutíamos porque não lhes dava hipóteses. Costumo dizer aos árbitros mais jovens que a personalidade é que impõe respeito e não o barulho do apito.

Assumia o erro quando errava?

Não o assumia directamente nem pedia desculpa, porque todas as pessoas erram, faz parte do jogo. Quando me enganava não o fazia deliberadamente.

Mas ficava a pensar no assunto…

Isso sim, tive noites muito mal dormidas.

Alguma vez sentiu receio?

Por duas vezes, no Tramagal e nas Caldas da Rainha. Em relação ao Tramagal, num jogo com o Torres Novas, há um lance que resulta no golo da equipa visitante e que foi mal validado. Quando estava no balneário avisaram-me que os adeptos estavam furiosos e que me tinham partido o vidro do carro. Acabei por sair no jipe da Polícia. Tive mais casos parecidos, mas nunca pensei em desistir.

Como é que se consegue educar as pessoas?

A primeira coisa é fazer com que tenham mais conhecimento das 17 leis de jogo, sem esquecer a mais importante, e que não está regulamentada, a lei do bom-senso. Depois têm de deixar de viver no fanatismo dos clubes e aprender a despir a camisola.

Qual foi o jogo que dirigiu que mais o marcou?

Uma final da Taça do Ribatejo, em Almeirim, entre o Alpiarça e o Coruche. Não soube tomar conta do jogo e prestei um mau serviço ao futebol. Felizmente tive muitos jogos em que a minha equipa desempenhou o seu papel de forma exemplar.

“Futebol Distrital perdeu mística mas ganhou qualidade”

Qual é a sua opinião sobre o futebol distrital?

Reconheço que está a perder a mística porque os jogadores viviam os clubes com outro sentimento; os municípios e as empresas locais apoiavam muito mais. No entanto, também reconheço que houve evolução, principalmente na qualidade do futebol e de infra-estruturas.

O que é preciso fazer para conseguir ter mais árbitros da região nos escalões principais?

Devia existir mais captação; esse é o nosso calcanhar de Aquiles. Por outro lado, é preciso realizar um trabalho árduo para conseguir manter os árbitros que conseguem lá chegar em bom nível. No meu tempo chegamos a ter seis árbitros da região na primeira categoria.

Os árbitros são bem remunerados?

No meu tempo nunca pensávamos no dinheiro, embora depois tenha ganho o suficiente para conseguir juntar algum. Hoje ganha-se mais do que antigamente, embora tenham que fazer quatro ou cinco jogos em dois dias.

É adepto do VAR (videoárbitro)?

Sou adepto, mas acho que falta em Portugal a tecnologia da linha de golo. Quando isso acontecer a verdade desportiva está cada vez mais protegida.

Ajudar é a melhor forma de agradecer

A sua família nunca cobrou as suas ausências?

Tive sorte por ter ao meu lado uma esposa, Judite Faria, incrível e que ainda por cima não gosta de futebol. Sempre me apoiou e fez muitos sacrifícios para que pudesse continuar a trabalhar e a dedicar-me à arbitragem.

Qual a razão para ainda se manter ligado?

Porque o Jorge Maia (presidente do conselho de arbitragem da AFS) não me deixa sair (risos). Estou na comissão técnica do conselho onde avaliamos e damos formações aos jovens árbitros. Gosto de colaborar e só vou deixar de o fazer quando tiver mesmo de ser.

Fez mais amigos ou inimigos?

Tenho a certeza que fiz muito mais amigos. Acho que nem sequer tenho inimigos ou pessoas de que não gosto. A função de observador, em que muitas vezes tenho que dar notas negativas, podia trazer muitas inimizades. Curiosamente são esses que mais me consideram e agradecem a honestidade das minhas avaliações.

Recentemente recebeu uma grande homenagem. O que significou para si?

Foi um viver de emoções; não tenho palavras para agradecer às pessoas com quem tenho lidado em todos estes anos. A melhor forma de demonstrar gratidão é continuar a ajudar e a fazer o que mais amo.

Manuel Faria: um árbitro que marcou gerações

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