António Luís Roldão dá nome ao Arquivo Municipal da Barquinha
A Câmara de Vila Nova da Barquinha deu o nome de António Luís Roldão ao Arquivo Municipal agora inaugurado. A cerimónia foi no sábado, 6 de Novembro, e contou com casa cheia. António Luís Roldão é a maior figura da cultura local e regional. A homenagem serviu para realçar o seu papel como historiador mas também como cidadão. Esta é a crónica de uma inauguração para ficar na história de Vila Nova da Barquinha.
António Luís Roldão no seu livro Retratos de 1987, dizia: “Ó minha Mãe, minha Mãe./Deixa o teu filho sonhar,/Que as asas que Deus lhe deu/Não lhe dão para voar.” Este poderia ser o belíssimo e sintético retrato de uma vida. Ousadia, insubmissão, idealismo, desprendimento, autodidactismo, humildade. Assim se trilhou um caminho desde uma infância penosa e exigente, melhor seria dizer uma ausência total de infância, para voos bem conseguidos, porque as débeis asas nunca o impediram de nada.
António Luís Roldão foi poeta, músico (pianista e clarinetista), investigador, jornalista, autarca, dirigente associativo, historiador e cidadão militante, verdadeiramente empenhado na vida cultural e artística do concelho que o viu nascer a 19 de Novembro de 1934. Foi em Vila Nova da Barquinha que as suas aptidões intelectuais e criativas se foram alinhando tendo aí ajudado a impulsionar o jornal “Novo Almourol”, onde ainda colabora; fez parte durante 50 anos da Banda de Música dos Bombeiros Voluntários; editou três livros de poesia e dois livros de crónicas históricas; colaborou no antigo grupo de teatro dos Arrais do Tejo; organizou durante anos as famosas Festas de Santo António, com os artistas da mais fina elite do país; assumiu a direcção do grupo coral da Paróquia como pianista, cantor e ensaiador.
Com uma vida tão preenchida e multifacetada, um emprego de guarda-livros e uma família com mulher e três filhos, ainda lhe sobrou tempo para pesquisar, investigar e “meter atrevidamente o nariz”, como ele gosta de dizer, nos arquivos históricos espalhados pela região e pelo país. Foi esta faceta de investigador local que lhe valeu a homenagem, atribuída pelo município de Vila Nova da Barquinha, ao associar o seu nome ao Arquivo Histórico Municipal, inaugurado no dia 6 de Novembro, em cerimónia enquadrada na comemoração do 185º aniversário do concelho.
O Arquivo Municipal, situado na Rua de Cabo Verde, ocupa o espaço de um antigo edifício municipal que António Luís Roldão não perdeu a oportunidade de explicar, na hora da inauguração, que se tratava, originalmente, de um antigo matadouro. Explicou também, na sua intervenção, que o seu gosto pela cultura e pela investigação começou cedo: “Sempre gostei muito de ler e de literatura. Como o dinheiro era pouco não fui mais longe e dediquei-me à Barquinha”. Enalteceu ainda, com gratidão na voz, o trabalho da equipa do município que ajudou a erguer este arquivo apesar do desastroso arranque deste empreendimento que, segundo recordou, se iniciou com o transporte dos livros e documentos numa pá carregadora, como se de lixo se tratasse, num verdadeiro atentado à cultura.
António Luís Roldão ocupou muitos anos da sua vida em busca de explicações para os acontecimentos da história local e regional, que se traduziram em crónicas diversas, que Fernando Freire, o presidente da câmara municipal, evocou na sua intervenção. Casos como os das irmandades e confrarias do concelho, a mudança do curso do Tejo, a história do Pedregoso e da Lameira, o resgate da Ermida da Senhora do Reclamador, entre muitos outros, foram analisados, aprofundados e dissecados por este incansável e, muitas vezes, obcecado estudioso.
À sua custa, deslocando-se sempre em transportes públicos, porque nunca possuiu viatura própria, dirigiu-se a muitos arquivos e bibliotecas, tendo referido, a título de exemplo, o Arquivo de Santarém como um dos que mais gostou de frequentar e onde já era amplamente conhecido e acarinhado por todos os funcionários. Apesar de todas as dificuldades António Luís Roldão nunca referiu qualquer dissabor ou sacrifício sentido neste percurso: “Fiz tudo simplisticamente, por necessidade e vontade minha. Dava-me anos de vida este prazer de investigar”.
António Luís Roldão foi sempre um cidadão despojado, desapegado das coisas materiais, introspectivo, com gosto pelo contacto humano e pela partilha de saberes, inconformado e insatisfeito. Só a arte e a herança cultural lhe interessam verdadeiramente. Foi para isso que trabalhou e é essa a herança que sente gosto em deixar, conforme se comprova pelo seu trabalho e pelo testemunho de muita gente que acompanhou a sua jornada.
Voltando às “asas” do poema inicial deste texto, é a poesia, mais uma vez, que melhor o resume: “Se eu fosse materialista/Estava aqui pelas certas?/Metal não é de artista/Que tem as asas abertas.” (Poema “Se Eu Fosse”, in Retratos, 1987).
No arquivo
Os meus olhos contemplam divertidos
As centenas de títulos profanados
De contos e de fundos malparados,
De omissões e de erros garantidos.
Monos de biblioteca, protegidos,
Fazem crer no sucesso…soletrados
Não passam de triunfos viciados,
São castelos no ar, no ar sumidos.
Olho à frente o acervo punitivo,
As histórias contidas no arquivo,
Protagonismo de homens sem cultura…
E face ao seu resumo, a tal leitura,
Sei, que mais do que os pés de barro humano
Vale o meu estro de cantor profano.
(Poema de António Luís Roldão, lido na cerimónia de inauguração).