Sobre as assombrosas aventuras e desventuras das incursões ao hipermercado
Extraordinário Manuel Serra d’Aire
Julgava que, com esta idade, já dificilmente haveria algo que me surpreendesse, depois da pandemia, de o Sporting voltar ser campeão e de ver o PS perder as eleições autárquicas no Cartaxo. E longe estaria de pensar que serias tu quem me deixaria quedo e mudo de espanto, ainda para mais com uma inimaginável história de supermercado.
E digo inimaginável porque, ao contrário de ti, que travaste conhecimento com uma caixa de supermercado excessivamente diligente e que apertou contigo por demorares a despejar as compras no tapete rolante, eu nunca tive tal experiência. E não conheço ninguém que tenha testemunhado episódio semelhante, nem sequer visto algo parecido na TV ou nas redes sociais. Não terás sido acometido por algum delírio causado por excesso de água-pé?
É que as minhas experiências no hipermercado costumam ser de sinal contrário. Já lá me aconteceu de quase tudo. Obviamente, escolho sempre a fila com menos gente e, ufano, olho para os pobres consumidores que aguardam noutras caixas em filas de quilómetros e questiono-me o que os levará a optar por tão miserável pena, tendo uma alternativa melhor à mão de semear. Passados 5 minutos de regozijo, percebo que ainda estou no mesmo sítio e que a minha fila não anda porque um produto não tinha código de barras e tiveram que chamar pelo altifalante um ajudante que nunca mais aparece.
Finalmente, a coisa resolve-se, mas por pouco tempo. A seguir é um casal idoso que quer pagar um carro cheio de compras e nunca mais dá com o cartão multibanco. Entretanto, pedem também todos os descontos e talões a que têm direito e entram em animada conversa com a caixa, como se estivessem na sala de espera do centro de saúde a fazer tempo para a consulta. E eu, atrás, a suspirar de enfado e a olhar para as outras filas, onde já não vejo os infelizes consumidores de quem ainda há pouco tinha sentido genuína compaixão.
Entretanto, ainda antes de entrar finalmente no tapete rolante com a minha mercearia avulsa, dá-se a substituição da caixa. Um momento inesperado que me traz à memória aquelas substituições nos jogos de futebol unicamente para queimar tempo e irritar os adversários e o público. Verifico, pela lentidão de processos, que devem andar a ver muita bola na TV. E não há um árbitro que as repreenda...
Poderia ainda falar-te dos clientes que se lembram de ir buscar mais um produto na hora em que estão para pagar ou dos chico-espertos que deixam o cesto ou o carrinho a marcar lugar na fila e andam alegremente a passar revista às prateleiras enquanto não chega a sua vez... e quando chega não estão lá e ficam muito indignados se lhes passam à frente. Também já apanhei desses últimos e confesso que tive uma enorme vontade de manejar um taco de basebol, mesmo não sabendo as regras da modalidade.
Tudo isto para te dizer que, em vez de te queixares por teres apanhado uma caixa de supermercado tipo Speedy Gonzalez, devias era gritar mil aleluias e dares três voltas de bruços à Capelinha das Aparições em agradecimento por tal felicidade. E se a senhora da caixa te falou num tom mais enérgico, no sentido de te despachares, pode ser apenas mais um sinal do tal empoderamento feminino hoje tão em voga. Temos que nos habituar...
Um bacalhau com todos do Serafim das Neves