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Casas de acolhimento dão amor mas não substituem as famílias
Olga Fonseca é a directora do departamento de emergência social e da Casa de Acolhimento da Fundação CEBI. A Casa de Acolhimento da Fundação CEBI, em Alverca do Ribatejo, é um porto seguro para as mais de duas dezenas de bebés e crianças que estão à guarda do Estado

Casas de acolhimento dão amor mas não substituem as famílias

A Casa de Acolhimento da Fundação CEBI é um porto seguro para mais de duas dezenas de bebés e crianças que estão à guarda do Estado. Foram abandonadas, mal-tratadas ou nasceram em ambiente de pobreza extrema. O sonho de todas, garante a directora Olga Fonseca, é um dia poderem regressar à sua família ou receberem uma nova.

O dia começa com o choro de um bebé vindo do berçário. A cuidadora pega-o ao colo e afaga-o contra o peito. Nos quartos ao lado crianças começam a levantar-se e a fazer a higiene pessoal com a ajuda das cuidadoras. De pequeno-almoço tomado e mochilas às costas as que estão em idade escolar deixam as instalações da Casa de Acolhimento da Fundação Cebi para mais um dia de escola.

Todas estão longe dos seus pais, algumas nunca os conheceram. Nos primeiros dias de vida foram deixadas para trás pelos seus progenitores, alienados das suas responsabilidades parentais. Outras foram retiradas às famílias. Mal-tratadas, abusadas, negligenciadas ou expostas a situações de pobreza. Muitas destas 29 crianças não saberiam o que é sentir amor, afecto, que alguém as deseja caso não tivessem sido sinalizadas e acolhidas nesta casa em Alverca do Ribatejo. Mas “o amor que aqui é dado não substitui uma família”. Esta última frase é dita por Olga Fonseca, directora do departamento de emergência social e da Casa de Acolhimento da Fundação CEBI.

A conversa com O MIRANTE, que decorreu entre a rotina de um dia normal na casa de acolhimento que tenta “reproduzir o dia numa casa de uma família tradicional”, começa pelo que vai mal num país que ignora estudos internacionais que alertam que “um bebé institucionalizado fica com repercussões ao nível do sistema nervoso e cognitivo” e problemas emocionais irreversíveis.

A lei determina que as crianças com menos de seis anos vivam em famílias de acolhimento caso sejam retiradas aos pais, mas curiosamente 97 % das crianças são acolhidas em casas de acolhimento. O que está a falhar?

Continua a não haver motivação para que as instituições se candidatem a trabalhar com equipas ao nível do acolhimento familiar. A CEBI trabalhou em tempos com famílias de acolhimento, num projecto que corria bem e foi interrompido na altura em que o Instituto da Segurança Social o interrompeu para avaliação e reestruturação. Entretanto passaram-se anos. É preciso olhar-se para esta situação e perceber o que se está a fazer a estas crianças. Intervir na capacitação das famílias e definir uma estratégia clara para a luta contra a pobreza na infância devia ser prioridade na agenda de qualquer Governo.

Quais são as principais causas para a institucionalização de bebés e crianças na casa de acolhimento?

De um modo geral, situações de perigo a que as crianças são sujeitas, que têm por base questões de pobreza agravada, que por sua vez provocaram a exposição à violência doméstica, abuso de álcool, gravidez precoce. Há também casos em que a criança foi exposta a outros comportamentos de risco, como maus tratos, abandono escolar ou abuso sexual.

Algumas foram retiradas das suas famílias e acolhidas nesta casa em contexto de pandemia?

Muitas. Neste momento existem problemas gravíssimos ao nível da pobreza, saúde mental e estruturação das famílias. Recebemos muitos bebés, o que mais uma vez vai contra tudo o que são as orientações europeias, da lei de protecção de crianças e jovens, porque nunca deveriam ir para uma casa de acolhimento, quando muito para uma família de acolhimento.

A entrada para o sistema de adopção é sempre uma hipótese em análise?

O nosso objectivo primário é sempre trabalhar a família biológica e tentar a reintegração da criança. Só em último caso se trabalha um projecto de vida alternativo. Das 600 crianças que já acolhemos 250 regressaram à família biológica e 120 foram adoptadas. Outras ingressaram em projectos de autonomia de vida.

Se o objectivo é serem uma resposta de passagem de que forma trabalham o projecto de vida das crianças e preparam as suas famílias para a reintegração?

Desde o momento em que a criança entra nesta casa a nossa equipa técnica dá início ao seu projecto individual de integração, que passa obviamente por um trabalho com todos os agentes envolvidos, que podem incluir a família, caso esta tenha sido reconhecida pela entidade que pede o acolhimento, como o tribunal ou a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, por exemplo. Nesses casos estuda-se a situação social e psicológica da família e traçam-se estratégias para o que é necessário desenvolver para preparar o regresso da criança. Visitam a instituição acompanhadas pela equipa e quando é aconselhável começam a ir passear com a criança, a passar noites com ela em casa até estarem reunidas as condições para que se finalize a reintegração.

O desejo destas crianças, mesmo das que foram mal-tratadas e negligenciadas, é sempre voltar para a sua família?

O desejo da criança é sempre a família, mesmo que tenham sido muito mal-tratadas. Voltar para a sua, caso a tenham ou terem uma nova família. E precisam de alimentar esse sonho, de fantasiar uma família que as ama e deseja para se estruturarem.

Devia existir mão mais pesada a nível de condenação judicial para os pais que abandonam os filhos?

É delicado. É preciso perceber porque os abandonam e o motivo pode ser ou não considerado crime. Os bebés podem ser o sonho de qualquer casal que não consiga ter filhos, já uma criança raramente é adoptada em Portugal. São raras as famílias que estão disponíveis a crianças mais crescidas. Geralmente por medo que estas crianças levem uma história de vida agarrada, traumas e o saudosismo da sua família biológica. Tudo isto não passa de um estereótipo porque quando há um bom acompanhamento e o amor existe não há que ter medo do passado de uma criança.

As crianças mais crescidas têm noção que não vão ser adoptadas?

Ao início não têm a noção clara que não vão poder ter uma família e à medida que vêem outras sair desejam-no cada vez mais. Com o passar dos anos algumas vão percebendo que a elas ninguém as quer e isso é traumático e fracturante.

E quando a adopção não corre bem o mais fácil é devolvê-las?

Infelizmente há famílias que devolvem as crianças e os motivos são tão variados como não haver compatibilidade com alguém da família, um animal de estimação ou porque fazia muitas birras e tinha maus hábitos.

O que acontece às crianças que não são adoptadas nem regressam à sua família de origem?

No nosso caso não temos capacidade do ponto de vista da estrutura física para acolher crianças com mais de 12 anos. No entanto, não vai embora até que haja uma resposta adequada para o projecto de vida que foi desenhado com ela. A última que saiu tinha 16 anos e foi integrada num projecto de autonomia de vida num apartamento da Santa Casa da Misericórdia. Desde que saiu tem vindo visitar-nos.

As crianças e jovens não sentem vergonha ou escondem que foram criados na casa de acolhimento da fundação?

As que ainda cá vivem, além de não terem vergonha, fazem questão de dizer que moram aqui, aos colegas do colégio da fundação. Trazem os seus amigos para brincar, lanchar ou para fazer trabalhos da escola e todas fazem questão de mostrar o seu quarto e objectos pessoais. Os que já partiram, de modo geral, mantêm o contacto. Alguns vêm apresentar os namorados e namoradas, os filhos e contar as suas conquistas profissionais. E temos casos de sucesso, como a jovem cabo-verdiana que viveu aqui e hoje tem um filho e é responsável pelo Instituto de Medicina Legal de Cabo Verde; ou o jovem que foi abandonado e adoptado sem sucesso duas vezes e se tornou num excelente chef de cozinha num dos melhores hotéis do Algarve.

Casas de acolhimento dão amor mas não substituem as famílias

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