“Trabalhar no serviço de urgência de um hospital é de uma dureza inexplicável”
Nascida no seio de uma família pobre, fugiu de casa com o sonho de voltar a estudar e não desistiu até conseguir tirar o curso de enfermagem. Hoje, aos 77 anos, Maria Fernanda Morais gere a Casa de Repouso Santa Madalena, em Alhandra, e não pensa na reforma porque sente que ainda tem muito para dar aos outros.
Aos 14 anos roubei 25 tostões e fugi de casa porque queria continuar a estudar. Tinha a quarta classe quando me disseram que ia largar os livros para cuidar dos animais da quinta. Meti três trapos num saco e apanhei um comboio para Lisboa por engano quando queria ir para Vila Franca de Xira onde tinha conseguido trabalho.
Toda a vida lutei e nunca parei até conseguir atingir os meus objectivos, por mais que me parecessem difíceis de alcançar. Comecei por ser cozinheira no antigo Hospital de Vila Franca de Xira até conseguir retomar os estudos e tirar o curso de enfermeira. Até concluir o curso nunca permiti que um homem se aproximasse de mim.
Na minha infância não soube o que era colo nem amor. Nasci no Carvalhal, aldeia do concelho do Bombarral, no seio de uma família pobre com mais 12 irmãos. Filha de um capataz e de uma lavadeira da quinta acabei por ser criada pelos meus padrinhos, os patrões dos meus pais.
Tinha 27 anos e vivia no hospital quando saí de lá vestida de noiva para me casar na igreja em Alhandra. Já namorávamos há um ano através de troca de correspondência. Tivemos quatro filhos. Hoje ele vive no lar, onde eu passo os meus dias até ser noite.
É muito difícil encontrar pessoas que queiram e estejam preparadas para trabalhar com pessoas idosas. É um trabalho que exige responsabilidade, paciência e saber dar o melhor de nós ao outro. Já me aconteceu contratar pessoas e ao fim de uma semana irem embora.
Os lares não podem ser um depósito para idosos. A vida num lar tem que ser o encontro com uma nova família que sabe dar amor. Abri a Casa de Repouso Santa Madalena há 27 anos depois de ter trabalhado num lar onde assisti a comportamentos horríveis para com os idosos. Temos 25 utentes e empregamos 14 funcionários.
Tenho 77 anos e sinto que ainda tenho muito para dar de mim aos outros. Não penso na reforma porque ainda não senti que é o momento de me retirar. Enquanto puder vou distribuir alegria e amor pelos meus utentes.
Trabalhar no serviço de urgência de um hospital é de uma dureza inexplicável. Ainda hoje me vêm à memória imagens de doentes feridos que me marcaram. Naquela altura nem se falava na possibilidade de recebermos apoio psicológico.
Quando ajudamos um bebé a nascer é como se o nosso amor se multiplicasse. Tirei o curso de obstetrícia e trabalhei 36 anos no Hospital de Vila Franca de Xira. Aplaudir os enfermeiros de vez em quando não é o mesmo que reconhecer verdadeiramente o seu trabalho. A valorização devia ser constante, inclusive ao nível salarial.
Nunca estamos preparados para ver partir alguém que amamos. A morte da minha sogra foi até hoje o momento mais duro da minha vida. Cuidei da minha mãe até ao dia em que morreu. Embora não me tenha criado, porque não tinha possibilidades financeiras, tratei dela até aos últimos dias.
Ser uma boa mãe não é dar tudo aos filhos, é saber ajudar quando é preciso. Temos que deixar os nossos filhos voar sozinhos e estar lá para aparar as quedas. Não compreendo os pais de hoje que chegam a passar dificuldades para dar aos filhos todas as futilidades que lhes pedem.
Todas as noites pego num livro para ler. As histórias de vida contadas em páginas de livros passaram a ser a minha companhia, agora que a minha casa ficou mais vazia. Cozinhar e caminhar no passeio ribeirinho de Alhandra a Vila Franca de Xira são outros dos passatempos que me dão prazer.
Sou uma mulher de fé. Nas conversas que tenho com Deus só lhe peço que me dê saúde para poder ver crescer os meus netos. Já venci um cancro no colo do útero. Ter saúde é a nossa maior fortuna.
Não podemos dizer aos outros tudo o que pensamos sobre eles. Há pensamentos que devemos guardar para nós, para não ferir susceptibilidades. Defino-me como uma pessoa que gosta de prestar serviço ao outro e que vive bem consigo mesma.