O rapaz de Alcanena que esteve entre os melhores do mundo no atletismo
Carlos Calado era criança quando começou a interessar-se pelo atletismo. Foi um dos melhores atletas do seu tempo deixando uma imagem de dedicação e carácter apesar de também se ter divertido e de assumir que na véspera de entrar numa competição tinha de sair à noite para distrair a mente senão não conseguia descansar.
Estava focado em ser o melhor e na altura que estava na fase de colher os louros de anos de esforço, em que até vomitava após os treinos, uma lesão obrigou-o a enfrentar as dificuldades de entrar no mercado de trabalho. Em pista só pensava em correr e olhava para o lado para ver quem chegava em segundo. Ostenta há quase 26 anos o recorde nacional do salto em comprimento. Já foi agente imobiliário e actualmente é vendedor de automóveis em Coimbra, onde reside com a mulher e um dos filhos. Não se sente preparado para ser treinador, mas os seus conhecimentos, tal como os de colegas contemporâneos, poderiam ajudar se assim a federação quisesse. Nesta entrevista, na esplanada no último piso de um centro comercial, com vista para o Mondego, o antigo atleta abre o coração e fala sem rodeios do estado do atletismo e da sua terra.
Valeu a pena tantos anos de investimento no desporto de alto rendimento? Vale sempre a pena, pela experiência de vida. Das coisas que tenho saudades e que me deixam alguma nostalgia é viajar. Quando terminei senti-me um pouco perdido na vida. Sabia que era impossível voltar ao que era depois da lesão. Quando tentei regressar a lesão dava sempre sinal e isso deixou-me uma mágoa, porque era a altura em que ia começar a colher os louros.
É recordista nacional do salto em comprimento há 25 anos. Parece que não há uma estratégia de formação de novos atletas... Se a federação olhasse para o número que tem de inscritos e ao chegar a uma grande competição ganhar duas medalhas, como é o caso da Patrícia Mamona ou do Pedro Pichardo, via que fizeram o trabalho deles, para eles, e que não criou bases...
Costuma dizer que apareceu dez anos adiantado no atletismo. Teve que fazer um esforço muito maior do que seria necessário hoje? Quem escolhe uma carreira desportiva procura algo que lhe dê prazer. Não há prazer quando se vomitava todos os dias no treino por levar o esforço físico ao limite. Como não havia literatura especializada em Portugal, juntávamos a literatura americana, mais sobre a velocidade, e a russa, que era mais muscular. Para conseguirmos treinar tudo havia um esforço enorme. Também não tínhamos barras olímpicas, tínhamos de fazer uma requisição à federação para virem de Espanha.
Como atleta não se divertia, não cometeu excessos fora do atletismo? Depende. Quando era altura de treinar não tinha tempo para isso. Quando era a altura de competir poderia ter algumas distracções, mas sempre focado no que ia fazer em termos competitivos. Se tinha uma competição ao sábado, na sexta-feira tinha que sair, ir à discoteca, mas era o primeiro a entrar e o primeiro a sair. Se estivesse em casa acabava por não descansar. Saindo falava e cumprimentava os amigos, distraía a mente. Quando fui campeão europeu Sub 23 na Finlândia tinha ido antes para o bar do hotel.
O que é que lhe custou mais sacrificar nos anos em que foi atleta? Sempre soube controlar-me, não sacrifiquei nada. Tinha um objectivo que era estar entre os melhores do mundo e era isso que me movia.
Como é que conseguiu manter a forma física depois de deixar de competir? Sempre tive cuidado com alimentação e continuo a ter. Comecei a fumar quando a minha mulher ficou grávida. Fumo esporadicamente quando sou atingido pelo stress. Não sou stressado, mas a espera cria-me ansiedade. Gosto de beber um bom vinho, não é beber vinho. Sou apreciador das coisas boas da vida.
Era sportinguista desde pequenino? Nem por isso (risos), mas nunca me liguei a clube algum porque também não sabia por onde ia passar. Nunca assumi as minhas preferências clubistas. Agora posso dizer que sou sportinguista. Há um ano encontrei os sapatos com que tinha ganho as medalhas e doei-os ao museu do Sporting.
Onde é que ganhou mais dinheiro, no Sporting, Benfica ou Porto? Foi no Sporting!
Porque é que não criou um negócio ligado ao atletismo ou uma marca de equipamentos? Tinha programado ter uma marca de equipamentos de competição. As coisas estavam orientadas, mas acabei por não conseguir. O que a marca - Following the Star - queria transmitir era a ideia de seguir uma estrela. Era vocacionada para os jovens que começavam no atletismo, que se revissem na minha dedicação, na forma de estar no desporto, a atitude, o carácter.
Por que motivo não é treinador?
Já tentei, mas por enquanto ainda não tenho vocação. Sou o padrinho da Academia de Atletismo do Eirense. Estive a acompanhar alguns jovens no ano passado.
Como é que vê as naturalizações de estrangeiros como atletas portugueses? Hoje somos cidadãos do mundo. O que não concordo é que não existam regras. Atletas que representassem a selecção dos seus países não poderiam ter a nacionalidade portuguesa. É muito bom que tenhamos estrangeiros como um Francis Obikwelu, com tudo o que ele trouxe para a modalidade, mas fica manchado por em Sevilha, em 1999, ganhar uma medalha pela Nigéria sendo que o record da Nigéria é melhor que o de Portugal onde ele competia. O mesmo se passa com o Pedro Pichardo que colocou o record de Cuba acima do de Portugal.
O que acha da polémica entre os seus colegas de modalidade Pedro Pichardo e Nelson Évora? Uma vergonha! Houve um discurso de ódio. Se uma naturalização foi mais rápida que a outra é por uma questão de interesse para o país. O Pichardo é um atleta formado e uma mais-valia para o país. Tem todo o direito a ter a nacionalidade portuguesa. Em relação aos muitos que estão à espera, têm todo o direito a que o seu processo seja mais rápido do que em relação a uma promessa que pode vir a ser ou não um grande atleta.
Os feitos que se esquecem rápido e as pistas abandonadas
Tem um pavilhão com o seu nome em Alcanena. Tem orgulho nisso? Claro. Pelo menos tenho uma coisa em meu nome ainda em vida.
Alguma vez sentiu que os autarcas da sua terra tentaram tirar partido da sua popularidade? Pelo contrário. Estamos em Portugal e na nossa área as novidades duram três dias e tudo passa.
Há pouco reconhecimento dos méritos dos atletas? Tivemos um Carlos Lopes, uma Rosa Mota, uma Fernanda Ribeiro, uma Aurora Cunha, que podiam estar ligados à federação, ao Estado, e temos várias pistas de atletismo que estão abandonadas. Gastou-se dinheiro e as populações não podem usar as pistas porque não têm equipamento, não têm pessoal com experiência para orientar as pessoas. Estes antigos atletas podiam ser uma mais-valia neste aspecto e na captação de jovens para as modalidades.
Deve ter sido difícil também para si ter deixado o atletismo… Os tempos não foram fáceis, desde que terminei a carreira devido a lesão. Sofri a instabilidade de entrar no mercado de trabalho. Tinha 29 anos e quando ia a entrevistas de trabalho diziam que era velho e que não tinha experiência. Mas a minha experiência de vida podia ser rentabilizada.
Agora vai pouco a Alcanena, chateou-se com a terra? Tenho lá os meus pais. Ainda me sinto ligado à terra e vou acompanhando ao longe o que se passa. Alcanena está a querer dinamizar-se, mas houve uma altura em que parou no tempo, em que era só curtumes e curtumes. A mão-de-obra era toda virada para esse sector.
Foi convidado a integrar algum projecto político em Alcanena quando tinha mais visibilidade? Estava focado na vertente desportiva e no que me envolvesse iria abstrair-me. Estava focado no atletismo.
Como vê o estado de Alcanena actualmente? O problema de Alcanena é a falta de empregabilidade e é preciso abrir o concelho a novas perpectivas. Tem-se estado a tentar fazer isso apesar de não ser ao ritmo que queremos. Os maus cheiros afastam muita gente de Alcanena. Não se consegue atrair investimento se não se resolver essa questão. Temos de tratar bem o que temos de bom, que é a natureza, a nascente do Alviela, o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, que não têm sido potenciados a nível turístico. A serra de Santo António está deserta.
O que é preciso fazer? A população de Alcanena nem enche um estádio de futebol. Vamos unir-nos, deixar-nos de guerrinhas pessoais e políticas. Por exemplo: nos dias de hoje estão sempre a aparecer projectos atractivos para captar turistas. Vamos unir as pessoas e pensar o que fazer para dinamizar o concelho e desenvolver projectos que sejam agregadores.
“Era uma pessoa que gostava de dar o salto no escuro”
Carlos Calado deixou Alcanena ainda muito jovem para se dedicar ao atletismo. Passou a viver em Leiria e treinava habitualmente na Marinha Grande, embora competisse com a camisola do Sporting e mais tarde dos rivais FC Porto e SL Benfica. Das experiências nos clubes do dragão e da águia não guarda memórias muito felizes, tendo inclusivamente ficado com dinheiro por receber.
Viveu em Leiria e mudou-se para Coimbra com a sua companheira há já alguns anos. Tem dois filhos, de 16 e 11 anos. Vai com alguma regularidade a Alcanena, onde vivem os pais, que o apoiaram nas suas decisões embora tenham manifestado algumas reservas quando deixou a fábrica onde trabalhava, em Alcanena, para ingressar no Sporting e dedicar-se ao atletismo.
Carlos Calado confessa que nunca gostou de futebol mas hoje “tem que gramar com ele” no acompanhamento do filho mais novo, que joga no União de Coimbra. Assume que se tornou sportinguista depois de ter representado o clube de Alvalade e admite que foi um erro ter rompido com o treinador Miguel Lucas, amigo e vizinho em Alcanena, com quem fez dupla durante o auge da sua carreira nos leões. Foi o quebrar de uma ligação que deixou marcas, mas entretanto pediu-lhe desculpa e continuam amigos. “Foi uma precipitação, o querer experimentar algo diferente”, diz, confessando que admite facilmente os seus erros pois só assim não volta a repeti-los. “Era uma pessoa que gostava de dar o salto no escuro”, diz.
Afirma-se como uma pessoa “ansiosa” e amante das coisas boas da vida. Fuma o seu cigarro quando está mais stressado, tem cuidado com a alimentação e aprecia um bom vinho. Gosta de estar no seu cantinho e assume-se como uma pessoa discreta que por vezes ainda é conhecida na rua por quem se lembra das suas façanhas nas pistas.
O único português que saltou mais de oito metros
Nascido em Alcanena a 5 de Outubro de 1975, Carlos Calado é um dos atletas ribatejanos com mais títulos nacionais conquistados, “18 ou 19”, tantos que nem o próprio tem a certeza assim de repente, quando confrontado com a questão. Certo é que ainda hoje detém o recorde nacional do salto em comprimento, com 8,36 metros, conseguido em 20 de Junho de 1997. Em quase 26 anos mais nenhum português conseguiu voar sobre a caixa de areia como ele e foi o primeiro atleta nacional a evidenciar-se a nível planetário nas disciplinas de saltos, que tantos êxitos têm dado nos últimos anos ao atletismo nacional. Com as condições que existem hoje, admite Calado, os resultados ainda teriam sido melhores.
Carlos Calado começou a sua carreira na Casa do Povo de Alcanena, a competir em provas do Inatel, e já como atleta do Clube de Natação de Rio Maior sagrou-se, em 1993, campeão nacional de juniores no triplo salto e no salto em comprimento. A partir daí, e durante mais de uma década, acumulou campeonatos e recordes nacionais uns atrás dos outros em disciplinas do atletismo como o salto em comprimento, o triplo salto, 60m, 100m, 200m e estafeta 4x100m, tanto em pista coberta como ao ar livre. Foi também o primeiro português a saltar a mais de 17 metros no triplo salto.
Conquistou medalhas em provas internacionais com a camisola de Portugal e esteve por duas vezes nos Jogos Olímpicos, em Atlanta e Sidney, embora sem chegar ao pódio. Foi Medalha de Prata no Salto em Comprimento no Europeu de Pista Coberta, foi vice-campeão europeu de sub-23 nos 100m e campeão no Salto em Comprimento e integrou a primeira equipa do Sporting que foi campeã europeia de atletismo em 2000. Em 2001 conquistou as medalhas de Bronze do Salto em Comprimento nos Mundiais de Pista Coberta e no Campeonato do Mundo de Atletismo. Em Outubro de 2001 foi distinguido pelo Governo português com a Medalha de Honra de Mérito Desportivo.
A maioria dos êxitos de Carlos Calado foi conseguida com a camisola do Sporting CP, que em finais de 1996 contratou o jovem talento de Alcanena. Saiu do clube do leão quando houve um corte nos ordenados no atletismo, do qual discordou. Representaria depois o FC Porto, o SL Benfica, o Bairro dos Anjos, Pombal, Casa do Povo de Alcanena e Fátima, onde terminou a carreira. Pelo meio teve uma paragem devido a lesão quando estava no auge carreira. Deixou a alta competição mas não arrumou as sapatilhas e o bichinho do atletismo perdura. Participa em provas de veteranos e é o padrinho da academia de atletismo do Eirense, clube de Coimbra, cidade onde trabalha e reside.
“Dava tudo por tudo nos treinos até vomitar”, seguia métodos de treino que combinavam técnicas das escolas russa e americana, corrigiu a postura, trabalhou os músculos e a mente. Gostava de espairecer antes das grandes competições e até chegava a frequentar bares e discotecas na véspera, mas sem excessos. Sempre se soube controlar porque o objectivo era estar entre os melhores do mundo e entrar sempre para vencer.
Um profissional das vendas que teve uma má experiência como empresário
Carlos Calado estudou até ao 12º ano, trabalhou numa fábrica após deixar a escola e voltou a entrar no mercado de trabalho aos 29 anos quando deixou o desporto de alto rendimento devido a lesão. Confrontou-se com as dificuldades de não ter experiência profissional fora da sua área e acabou por entrar no ramo imobiliário. Vivia em Leiria e começou a trabalhar no Algarve e em Lisboa. Com a crise do imobiliário que estalou em 2008 viveu tempos difíceis como muita gente. “Tudo aquilo em que tinha andado a trabalhar durante dois anos foi por água abaixo”, conta. Deu a volta por cima e continua no ramo das vendas, no concessionário de automóveis da Suzuki em Coimbra, embora ainda tenha alguns clientes no sector imobiliário.
Antes, quando ainda era um atleta famoso, em 1999, teve uma aventura no ramo dos negócios, com a abertura de um bar em Alcanena, que não correu bem e “as coisas não ficaram fáceis”. A experiência custou-lhe algumas economias que tinha feito no atletismo. “Correu mal porque nunca estava lá”, diz, concluindo que foi um erro ter desenvolvido as duas actividades ao mesmo tempo. Chegou a ter programada a criação de uma marca sua de equipamentos de competição, inspirada na sua carreira e na sua forma de estar no desporto, mas o projecto acabou por ficar no papel.