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“No Hospital de Vila Franca de Xira não existe a palavra ‘nim’ e não se espera três meses por uma decisão”

“No Hospital de Vila Franca de Xira não existe a palavra ‘nim’ e não se espera três meses por uma decisão”

Carlos Rabaçal é director clínico e foi o primeiro interno do serviço de cardiologia criado há 35 anos. Carlos Rabaçal foi o primeiro interno do serviço de cardiologia do Hospital de Vila Franca de Xira. Ao fim de 35 anos é o director daquele serviço e o director clínico do hospital. Trabalhou com uma administração pública “pura e dura” e desde 2011 com a administração do Grupo José de Mello Saúde que gere aquele hospital público em sistema de parceria com o Estado. Diz que as diferenças são significativas. “Há sempre pessoas disponíveis para nos ajudarem a resolver as situações e há diálogo. Sentimos que fazemos parte de uma equipa e há uma enorme preocupação com as pessoas e com os profissionais”, afirma.

Há aquela anedota do médico que atende um telefonema de alguém que quer saber informações sobre um doente. Ele pergunta quem fala e o interlocutor diz que é o próprio doente e que está a ligar porque passam muitos médicos por ele mas nenhum fala com ele. O médico trata das doenças e o enfermeiro dos doentes? Na história da medicina houve uma altura em que o que interessava ao médico era a doença. Não é isso que nós hoje procuramos quando estamos a formar os nossos jovens médicos. Nós queremos que eles se interessem pela pessoa. Os médicos e todo o pessoal que aqui trabalha. Nós insistimos muito nisso. Estamos a lidar com pessoas. Uma coisa que me magoa é quando pergunto a um doente quem é o médico que o tem visto e ele não sabe porque nunca lhe foi dada essa informação.
Há médicos que mal olham para os doentes, começam de imediato a emitir pedidos de exames. O doente ainda balbucia: ‘Ó doutor quer que eu tire o sapato para ver como eu tenho o calcanhar’, por exemplo, e ele diz logo que não vale a pena. Têm medo que as peúgas do doente cheirem muito a chulé? Isso é o pior que pode acontecer. Mas infelizmente situações dessas ocorrem em todo o mundo.
Já trataram mais casos de Legionella depois de 2014? Aparece um ou outro caso, muito esporadicamente.
Diz-se que as caixas de comentários dos jornais online e as redes sociais tiraram muitos clientes aos psiquiatras porque muita gente frustrada pode descarregar ali as suas frustrações. As consultas de psiquiatria estão a diminuir? Não notei nenhuma diminuição. Pelo contrário. O serviço de psiquiatria é um dos serviços que de uma forma crescente vem aumentando a sua actividade, não só da consulta como do internamento. E nós também fomos sentindo necessidade de ir aumentando o quadro que é superior ao quadro de psiquiatras que tinha sido negociado com o Estado. Aliás, em todas as especialidades houve aumento de quadros desde que viemos para o novo hospital.
Não o incomoda que seja a indústria farmacêutica a pagar uma grande parte das acções de formação e actualização dos médicos? É verdade que não há almoços gratuitos. Ninguém dá, por dar, como facilmente se perceberá. Mas deve haver uma ética e deve haver transparência nesta relação. E já houve uma grande evolução nesse aspecto. Curiosamente fala-se muito da relação entre a indústria farmacêutica e os médicos mas não se fala de outro tipo de relações que há noutras áreas e noutras profissões. Quando aparecem notícias destas eu penso sempre que há algum interesse por detrás delas. Garantidamente.
Mas não deixa de ser verdade que as farmacêuticas gastam alguns milhões na organização de congressos, seminários e outras acções. As farmacêuticas têm tido um papel que cabia ao Estado acautelar, que é a formação dos profissionais. Acho que ninguém mais que o Estado quer ter profissionais de grande qualidade a trabalhar e os profissionais têm que se actualizar. Eu não preciso de ir a dez congressos por ano mas tenho que ir a alguns. Faz parte do nosso compromisso que todos os médicos do hospital vão, pelo menos, a um dos grandes congressos da sua área de especialidade. Isso é o que nos garante que as pessoas continuam a estar actualizadas e na linha da frente do conhecimento.
Quais as principais diferenças entre uma administração hospitalar pública, pura e dura, e agora tem uma administração hospitalar privada num hospital público. A primeira diferença no caso de Vila Franca de Xira foi o facto de o novo hospital ter sido feito com uma parceria público-privada. Garantidamente não haveria hospital novo se não tivesse sido assim. Estaríamos ainda encaixotados no velho hospital a trabalhar em condições muito difíceis. Esta parceria também é muito próxima das pessoas que aqui trabalham. Está muito atenta e tem um compromisso com a segurança clínica. Tem uma grande preocupação com as pessoas, com os seus profissionais.
E as diferenças no dia-a-dia. Aqui não há duas palavras. Não há o famoso “nim”. Aqui há sim ou não. E as decisões não são tomadas ao fim de três ou quatro meses. Sabemos sempre com o que podemos contar. Se, por exemplo, houver um profissional de baixa médica nós, para que aquela actividade não caia, temos capacidade de contratar pessoas para fazer aquele trabalho durante aquele tempo. Isto na função pública não é possível. É complicadíssimo. Quando o processo para a contratação estivesse feito já a pessoa em falta tinha voltado ao serviço. Há pessoas disponíveis para nos ajudarem a resolver as situações e há diálogo.
Faz sentido mandar fazer uma ressonância magnética a um doente de 96 anos, por exemplo? É para tratar do que eventualmente venha a ser detectado ou é apenas para os internos terem matéria para estudo? Os doentes de 96 anos não são todos iguais. Pode fazer algum sentido. Aqui, garantidamente, não se fazem exames apenas para o estudo de casos por parte dos médicos. Não há exames feitos para andar a fazer trabalhos. Isso até viola os princípios que devem estar subjacentes aos trabalhos de índole clínica.
Na sociedade actual ninguém quer que o familiar ou o idoso institucionalizado, já em fase terminal, morra em casa ou no lar. E então tem que vir morrer ao hospital e a entrada é pela urgência. Quando a expectativa é a morte próxima acho que qualquer um de nós deveria morrer em sua casa, junto dos seus. É melhor que morrer num hospital, num ambiente desconhecido, asséptico, em que há profissionais a trabalhar mas que têm que olhar por várias pessoas e podem não estar tão presentes.
Uma entrada de um idoso com doenças crónicas pela urgência não é uma violência? Por vezes o médico não sabe nada ou quase nada daquela pessoa. Mas famílias e lares levam os idosos para as urgências com frequência. Nós temos tido um trabalho com os lares. Estamos a tentar ter um bilhete de identidade de todos os idosos que estão em lares com informação sobre o seu estado de saúde e as medicações que fazem, no sentido de, quando eles são trazidos ao hospital, no mínimo não caiam aqui completamente desconhecidos. Queremos que exista qualquer coisa que os acompanhe, a que nós tenhamos acesso, para sabermos o que se passa com ele.
Continua a haver demasiadas urgências. Nós sabemos que há uma grande carência de médicos de família e muitas pessoas que têm problemas acabam por recorrer ao hospital. Acabamos por ter aqui um grupo de doentes que por vezes até se aborrecem porque na triagem são classificados com azul ou verde e ficam muitas horas à espera. Essas pessoas correspondem a cerca de 45 por cento dos doentes que vão à urgência. Porque não podem ir a outro lado acabam por perturbar a dinâmica fundamental de funcionamento de um serviço que deveria ser apenas para as situações urgentes.
Qual a sua opinião sobre o Testamento Vital? É um acto de cidadania fazermos o nosso testamento vital. Devemos assumir como queremos finalizar os nossos dias. E devemos dar conta disso e devemos deixar expresso. Claramente expresso.
Continuam a morrer muitos doentes devido a erros médicos. O que é feito no Hospital de Vila Franca de Xira para reduzir tais situações? O erro médico preocupa os hospitais e os profissionais de saúde de todo o mundo. Como é sabido, queremos ser o hospital mais seguro do país e trabalhamos arduamente para reduzir ao máximo essas situações. Em relação àquelas situações como a do doente que faz o comprimido que não devia fazer ou que faz a injecção que era para o doente ao lado, estamos francamente bem mas o erro clínico, esse, há-de acontecer sempre. Infelizmente a medicina não é uma ciência exacta.
Há medicamentos para negros e para brancos? Não. Os medicamentos são iguais para todos. Mas sabemos que em determinadas doenças o comportamento do indivíduo negro, pelo seu perfil genético, responde melhor a este ou àquele tipo de fármaco. Mas em relação à raça caucasiana é exactamente a mesma coisa. Há medicamentos que se adequam mais ao indivíduo da raça caucasiana do que da raça amarela. Um medicamento que se utiliza para baixar o colesterol tem uma eficácia tão grande nos indivíduos da raça amarela que temos que lhes dar doses mais baixas. A um negro hipertenso também damos alguns fármacos diferentes dos que são mais adequados aos da raça branca.
Como se sente, como cidadão, num mundo em que há seres humanos a lutar para sobreviver à fome enquanto outros lutam para sobreviver à abundância. É algo que nos deixa perplexos e nos causa um sentimento de revolta. Como é possível haver sociedades onde a abundância convive de forma impassível com a miséria, da fome e da desgraça? Mas temos que ter capacidade de sentir os outros e de os tentarmos ajudar porque senão deixamos de ser humanos. Este drama dos refugiados, por exemplo, é uma coisa que magoa. Podemos pensar que nada podemos fazer mas podemos fazer sempre qualquer coisa por mínima que seja.

“Eu nasci em Kamakupa. Ka...ma...ku...pa!”

Carlos Rabaçal nasceu no sul de Angola, em Kamakupa, localidade que teve o nome português General Machado. O pai, António Maria da Silva, tinha ido para aquela antiga colónia portuguesa aos 11 anos de idade. A mãe, Adelina Rabaçal, tinha nascido lá, também em Kamakupa, para onde tinham emigrado os avós que eram de Figueira de Castelo Rodrigo.
“Rabaçal é só da minha família. Não há mais nenhuma família com o nome Rabaçal. Tudo o que for Rabaçal tem a mesma origem, Figueira de Castelo Rodrigo, que é de onde era o meu avô materno que foi para Angola em 1898. E o primeiro Rabaçal foi o pai dele. Rabaçal entrou no nome porque ele andava pela serra do Rabaçal a vender gado”.
O actual director clínico e chefe do serviço de cardiologia do Hospital de Vila Franca de Xira começou a estudar medicina em Luanda, para onde a família se tinha mudado. Estava no segundo ano do curso quando se deu o 25 de Abril. Com a cidade a ferro e fogo foi inevitável a vinda para Portugal. O destino foi Lisboa.
Um angolano desterrado para Portugal ficou completamente perdido. Tudo aqui era pequenino e apertadinho. Uma família inteira assim a adaptar-se. Carlos Rabaçal tem mais dois irmãos. “Durante um ano andei completamente perdido”, confessa. Depois voltou a estudar. Teve que repetir o segundo ano mas chegou ao fim sem problemas de maior.
Depois de acabar a licenciatura fez os dois anos de internato de policlínica no antigo hospital de Vila Franca de Xira e foi o primeiro interno do serviço de cardiologia entretanto criado (ver caixa). Reúne-se frequentemente com amigos, nomeadamente de Angola.
“Luís Sambo, ministro da Saúde de Angola, foi meu colega de Liceu. Foi um técnico credenciado na Organização Mundial de Saúde. Esteve em Portugal várias vezes e encontramo-nos sempre que podemos. E tenho um grupo que reúne regularmente”.
Aprendeu a tocar viola como se toca em África. De vez em quando ainda vai à procura do instrumento para tocar uma semba, aquilo a que geralmente se chama merengue. Também gosta de Mozart, Pink Floyd, Fausto, Sérgio Godinho e de música angolana e cabo-verdiana. E lê, lê muito, lê tudo o que apanha. Diz que é um leitor compulsivo.
Sportinguista, vive os jogos da equipa principal de futebol com grande paixão mas reconhece que com o passar dos anos está mais moderado nos protestos contra as arbitragens e que o risco de lhe dar uma coisa durante um jogo é muito menor.
Tem dois filhos. Um, o Nuno, é engenheiro agrónomo e enólogo. É a ele que o pai vai deixar a garrafeira. Catarina, dez anos mais nova que o irmão, licenciou-se em Direito, o curso que Carlos Rabaçal não tirou porque não havia Faculdade de Direito em Luanda. “A ela vou ter que dar a minha colecção de selos”, declara.

A chinesa e o médico que falava várias línguas

O Hospital de Vila Franca de Xira abrange uma área com muitos imigrantes e alguns falam um português muito rudimentar, acontecendo o mesmo com os familiares que os acompanham. Existe a possibilidade de solicitar um tradutor para algumas línguas mas nem sempre isso é possível.
Carlos Rabaçal contou a O MIRANTE a história da senhora chinesa que a polícia levou para o hospital numa noite de domingo para segunda-feira. “Já não me lembro porque a levaram para lá mas muitas vezes quando não se sabe onde deixar alguém deixa-se na urgência”, diz com humor.
A senhora só falava mandarim e durante a noite não foi possível encontrar um tradutor e da embaixada da China também ninguém atendeu. Na segunda-feira de manhã, enquanto continuavam a ser feitos esforços para encontrar a ajuda, o director clínico do Hospital foi tomar café e estava a contar o caso a um colega quando ouviu alguém dizer que falava mandarim.
“Eu olho e era um colega nosso, especialista deste hospital, Dr. Carlitos Malu, que é angolano. Ele explicou-me que sabia mandarim porque tinha feito uma parte da especialidade em Xangai. Eu levei-o logo comigo e ele conseguiu entender-se com a senhora e ficámos a saber o que se passava com ela”.
Mas a história não acabou ali, como conta Carlos Rabaçal. “O mais fantástico foi que a meio da conversa em mandarim ele volta-se para um indivíduo que também estava na urgência e começa a falar noutra língua que eu também não conhecia. Era ucraniano. Ou seja, o meu colega Carlitos Malu fala português, algumas línguas de Angola, francês, inglês, mandarim, ucraniano e sabe-se lá que mais. É um autêntico poliglota”.

“Nos hospitais de Lisboa havia quatro médicos para cada doente”

“Comecei a trabalhar no Hospital de Vila Franca de Xira em 1981. Vim num grupo de trinta e seis internos. Na altura éramos os policlínicos e tínhamos dois anos de internato.
* * *
Não conhecia o hospital nem conhecia Vila Franca de Xira mas escolhi vir para aqui porque havia uma avalanche de médicos nos hospitais centrais de Lisboa e eu queria ver doentes. Tinham-me dito que em Lisboa eram três ou quatro médicos para cada doente.
* * *
No grupo vinham médicos de Vila Franca de Xira como o Pedro Afonso, o Jorge Ramos, a Lucinda Mata que eram daqui. Eu coloquei Vila Franca de Xira em primeiro lugar porque era o hospital mais próximo de Lisboa.
* * *
O serviço de cardiologia abriu em Maio de 1981, há 35 anos. Eu fui lá colocado em Novembro do ano seguinte. Depois dos dois anos de policlínica ainda tive que esperar três anos para fazer o exame da especialidade mas continuei a trabalhar naquele serviço. Com a alteração da nomenclatura do hospital o serviço tornou-se idóneo para fazer formação e eu fui o primeiro interno a fazer a especialidade com base em Vila Franca de Xira.”

“No Hospital de Vila Franca de Xira não existe a palavra ‘nim’ e não se espera três meses por uma decisão”

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