“Só tive medo duas vezes”
Sérgio Carrinho, presidente da Câmara da Chamusca há 23 anos
Nasceu no Pinheiro Grande, no seio de uma família pobre, mas estudou até ao 11º ano coisa rara naqueles tempos. Cresceu nos loucos anos 60, foi contestatário e gadelhudo, esteve ano e meio na Guiné e quando regressou meteu-se na política. Passou quase metade dos seus 54 anos à frente da Câmara da Chamusca, uma missão que não lhe deixa muito tempo para outros prazeres. Aos fins de semana devora jornais e bate umas sornas no sofá. Para além disso, gosta de música, do Sporting, e de touradas, mas não se perde por nenhuma destas actividades. É sócio de um bar, mas não gosta de muita agitação. No final do mandato diz que não se recandidata e que vai tirar três meses de férias.
Sérgio Morais da Conceição Carrinho nasceu há 54 anos na aldeia do Pinheiro Grande, a cinco quilómetros da Chamusca. O pai e a mãe trabalhavam no campo e era da terra que saía o sustento para uma família de seis pessoas (tem mais dois irmãos e uma irmã, a única que é mais velha que ele). Mas o rendimento da agricultura era baixo e o pai teve de começar a trabalhar nas estradas, deixando a agricultura para os fins-de-semana. “Foi um dos operários que construiu o passeio exterior da Ponte da Chamusca”, lembra o filho.O pequeno Sérgio fez a instrução primária na escola do Pinheiro Grande e era bom aluno, o que lhe valeu um convite para prosseguir os estudos. Tinha 11 anos e acabara a quarta classe, quando a professora e umas senhoras ligadas à Igreja, vendo que o miúdo era esperto, lhe propuseram ir estudar para a Chamusca ou para o Seminário. Já de olho nalgumas das moçoilas do Pinheiro Grande e com medo de ter de ir para padre, recusou liminarmente a ida para o seminário mas aceitou a entrada para o colégio na Chamusca.A opção foi pensada e repensada lá em casa porque os tempos eram difíceis e numa família pobre e com pouco dinheiro dois braços eram sempre uma valente ajuda. Mas acabou por ir fazer o exame de admissão, passou e foi-lhe atribuída uma bolsa de estudo, factor que influenciou a decisão final de ir estudar para a vila.Mas logo se colocou outro problema: o transporte. Teve de aprender a andar de bicicleta e reparti-la com o pai. Ia e vinha todos os dias do Pinheiro à Chamusca e recorda-se de a avó, que era costureira, lhe ter feito um fato com o plástico das sacas de farinha que então era distribuída pelos americanos. Esteve no colégio dois anos, até completar o segundo ano, mas depois a instituição fechou e formou-se um externato liceal, onde, à segunda, fez o quinto ano (actual nono).Apesar das dificuldades da infância, Sérgio Carrinho concorda que foi um privilegiado. “Tive a sorte de ser seleccionado para ir estudar. Calhava a muito poucas pessoas”, refere.O primeiro trabalho, além das ajudas no campo aos fins-de-semana, foi raspar as ervas nas ruas do Pinheiro Grande. Estava de férias, tinha dez anos e ganhava 2$50 por dia. “Era uma coisa importante para a época”, recorda. Nas férias seguintes começou a trabalhar na fábrica de tomate da Chamusca (Spalil). Recebia o tomate e preenchia os papéis das classificações do produto. Foi na mesma fábrica que começou a trabalhar “a sério”, após completar os estudos.19 meses na GuinéA fase da juventude de Sérgio Carrinho correspondeu aos loucos anos 60. Era irrequieto, usou cabelo comprido, mas a vida naquela altura era marcada pela Guerra Colonial. Lembra-se que alguns iam e não voltavam e recorda dois amigos do Pinheiro Grande que morreram com seis meses de diferença. A um deles tinha ele dado explicações para que pudesse tirar a carta. A sua altura de ir para a tropa chegou e foi fazer a recruta às Caldas da Rainha. A especialidade de atirador tirou-a em Tavira, no Algarve, e era lá que estava quando morreu Salazar. Na altura, ir de comboio das Caldas a Tavira demorava 12 horas, mas isso nem foi o pior da tropa. Um dia quando regressou com a companhia ao quartel, havia uma invasão de percevejos, o que levou alguns colegas a “passarem-se” e a lançarem fogo aos colchões. Resultado: tiveram de dormir três dias na parada. Felizmente o tempo ainda estava quente e estavam no Algarve.Concluída a especialidade, regressou às Caldas, e no dia em que fez 22 anos foi-lhe dada a “belíssima” notícia que podia vir nesse dia para casa… porque daí a seis dias embarcava para a Guiné. Foi um choque para a família, sobretudo para a mãe, já então muito doente. Nessa altura também já namoriscava a actual mulher - Elisete - mas o compromisso ainda não se tornara mais sério porque havia sempre o fantasma da chamada para combate.A viagem até à antiga colónia demorou uma semana e foi parar a Farim, a cerca de vinte quilómetros do Senegal, onde foi incluído numa companhia de caçadores constituída essencialmente por soldados negros. Era uma zona de guerra e teve várias experiências que o marcaram. A sua missão consistia essencialmente na vigilância a estradas e desminagem, mas um mês depois de ter chegado, a zona foi atacada por mísseis terra-terra, que caíram a cerca de cinco quilómetros do local onde estava. Participou na missão de retaliação, em que se fez uma “limpeza” à zona de onde tinha partido o ataque, uma das que mais o marcou.Trinta anos depois, Sérgio Carrinho confessa que a guerra não lhe dizia nada, mas foi por espírito de missão e amor à pátria. “Fui, embora percebesse que aquilo era uma irracionalidade”, reforça, acrescentando que não fugiu para o estrangeiro porque é uma coisa que não faz parte do seu feitio, embora perceba as razões de quem saiu.Regressou do Ultramar em 1972, após 19 meses em que só veio uma vez de férias. Apesar das três décadas de distância, ainda guarda uma dúzia de amigos dessa altura que se juntam pelo menos uma vez por ano. “Alguns são os meus segundos irmãos. Na guerra conhecem-se as melhores pessoas e os maiores crápulas”, comenta, confessando que a guerra mudou a forma de encarar a vida. Não ficou propriamente com problemas de stress pós traumático, mas ainda hoje detesta ouvir foguetes a rebentar.E onde estava Sérgio Carrinho no dia 25 de Abril de 1974? “Estava a trabalhar na secção de contabilidade da fábrica do tomate. Ouvi logo de manhã que estava a haver uma revolução em Lisboa e fui trabalhar cedo. O nosso trabalho nesse dia foi conversarmos todos e montarmos um piquete de segurança à fábrica”, recorda.O actual presidente da Câmara da Chamusca participou pela primeira vez em actividades políticas concretas em 1969, na campanha eleitoral para as eleições legislativas em que primeira vez concorria a CDE. Definindo-se politicamente de esquerda mas humanista, viveu tempos agitados na altura mas nunca chegou a ser preso. O mais próximo disso aconteceu nas vésperas das eleições de 69, em que tinham sido proibidos ajuntamentos a mais de três pessoas e ele e mais um grupo de dez amigos foram jantar e ficaram na rua a conversar. Foram advertidos pela GNR mas continuaram como se nada acontecesse. Foram identificados e teve de responder a interrogatórios pagar uma multa. Um dos colegas chegou a ser agredido no posto.Perdeu-se um doutor, ganhou-se um presidenteDepois do 25 de Abril, Sérgio foi com a esposa, então namorada, estudar para Torres Novas, onde fez o 7º ano (actual 11º). Participaram ambos nas campanhas de alfabetização de 74 e casaram em 76. Ainda se matricularam na faculdade mas as primeiras eleições autárquicas obrigaram a deixar os estudos de lado, uma vez que foi eleito vereador. Perdeu-se um doutor mas, três anos depois, nas eleições de 1979, a Chamusca ganhava o seu actual presidente da câmara.Curiosamente, o dia em que foi eleito presidente da Câmara foi um dos mais complicados da sua vida e onde confessa que teve medo. “Houve duas alturas na vida em que senti medo. Uma delas foi na guerra, onde tive muitas vezes medo, sobretudo no último mês e meio em que temia que me sucedesse alguma coisa depois de tanto tempo sem problemas, e a outra na noite das eleições. Não foi um medo frio da morte, como na guerra, mas um medo da responsabilidade e de não ser capaz de desempenhar aquela função”, conta Sérgio Carrinho, que na altura tinha 30 anos e pouca experiência.Com uma educação católica, ajudou à missa durante vários anos, mas aos 16 anos, começou a questionar-se e foi-se progressivamente, afastando. “Hoje acredito na vida da terra e acabou”, diz. No entanto, respeita todas as convicções e só se passa da cabeça com os fundamentalistas. O comportamentos de alguns condutores na estrada também o enfurece, mas tenta guardar a ira para si, embora fique a “ferver” interiormente. Mas quando a “fervura” atinge o limite, não é raro sair-lhe da boca uma obscenidade, dar um pontapé numa porta ou um murro no telefone.Outra das características de Sérgio Carrinho é não ter carta de condução. “Costumo dizer que só não tenho a carta porque sou nabo”, começa em jeito de brincadeira. Mas a justificação é mais profunda e conta que até aos 20 anos nunca teve dinheiro para ter carta e carro. Para sair aos fins-de-semana tinha sempre um amigo que tinha carta e para o trabalho a viagem era curta e feita de bicicleta. Quando casou a mulher já tinha carta e carro e, como é um bocado preguiçoso, não a tirou. Agora é que tem quase a certeza que já não vai tirar, até porque tem muita confiança na condução da esposa. A vida autárquica não lhe deixa muito tempo livre, mas no pouco que tem o que mais gosta é… de não fazer nada. As férias reparte-as por 15 dias de praia e outros tantos para uns passeios por casa de amigos ou para ir às festas da região. Sagrada é a leitura de jornais ao fim de semana. “Sou um consumidor compulsivo de jornais”, confessa, enquanto revela que também aproveita o pouco tempo de descanso para “dar umas tareias no sofá” ou olhar as suas colecções. Tinteiros, garrafas de licor e outras peças de arte popular, compõem as prateleiras da sua casa.Desporto não pratica, a não ser andar a pé. Vícios só o cigarro. Começou aos 17 e até hoje nunca mais parou, embora o consumo diário varie bastante consoante o stress. Não sai muito à noite e quando o faz é para sítios calmos. “Agitação tenho eu que chegue todos os dias”, diz.No entanto, como é sócio de um bar na Chamusca, onde às vezes vai trabalhar para a caixa, há noites em que tem de “levar” com música mais alta, que só ouve por obrigação. Em casa, é mais selectivo no que ouve, mas o seu estilo é abrangente e vai de Cesária Évora à música cubana, passando pela música clássica e popular portuguesa. Cantar é que não. “Não. Isso é que não. Sou um podão completo. Só me lembro de cantar uma vez, quando estava na Guiné, e estava tão bêbado que me deu para isso”, confessa entre sorrisos. Também gosta de ouvir uma boa anedota mas diz que não é um bom contador de histórias.Do casamento com Elisete, que completou recentemente as bodas de prata, resultaram dois filhos: O Miguel, de 25 anos, que nasceu quando ele era vereador, e o Pedro, de 22, que veio ao mundo num dia em que havia greve na tabaqueira e se lhe acabaram os cigarros. Só tinha um charuto e foi isso que lhe acalmou os nervos da espera. Diz que nunca quis privilégios para os filhos por ser presidente, mas lamenta nem sempre os ter podido acompanhar tão de perto como queria.Este é o último mandato de Sérgio Carrinho à frente da Câmara da Chamusca, e por isso já pensa no que vai fazer a seguir. “A primeira coisa que quer fazer quando deixar a câmara é ter três meses ininterruptos de férias”, diz no meio de uma gargalhada. Depois do descanso é certo que não vai ficar parado, mas ainda é cedo para decidir o que vai fazer.Jorge Guedes
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