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O ritual do quartão mantém-se, mas a tradição já não é o que era

Quem parte a bilha paga uma rodada

Jogo do quartão regressou às ruas da Chamusca na quarta-feira de cinzas

Começam por juntar-se à mesa para um almoço de grelos com batatas e bacalhau, regado com azeite e muito vinho. Já de barriga cheia, mais de três dezenas de homens percorrem depois as ruas da Chamusca em grande algazarra. Param à porta de todas as tascas que encontram pelo caminho para trocarem entre si um quartão (bilha de barro) que rodopia no ar. Aquele que o deixar cair é presenteado com um grito do grupo: “tens razão”. A penitência pela desatenção cumpre-se com o pagamento de uma rodada de vinho para todos. O ritual cumpre-se todos os anos na quarta-feira de cinzas.

A partida para este rallie das tascas é dada no Largo fronteiro ao bar Pachã, onde habitualmente se serve o almoço. Na primeira etapa do jogo do quartão, um dos mais velhos do grupo, formado em círculo, evoca o nome dos que já faleceram e que lutaram pela manutenção da tradição. Habitualmente são chamados pelas alcunhas, como o Caseca, o Pernita ou o Semedo. Uma salva de palmas dá solenidade ao momento, ao mesmo tempo que o quartão é elevado ao céu e depois atirado ao chão, desfazendo-se em cacos.Apesar do ritual antigo nunca se ter perdido até hoje, a tradição já não é o que era. Antigamente as bilhas usadas no jogo eram “roubadas” nas casas dos habitantes da vila. Actualmente é a câmara municipal que as fornece. As rodadas também raramente são pagas, uma vez que agora os comerciantes é que oferecem a bebida e alguns petiscos. O entusiasmo esse é que não mudou. As disputas também são antigas. Uns dizem: “eu sou mais antigo e percebo mais disto do que tu”. Outros querem fazer valer as suas ideias sobre qual o caminho a seguir. Discussões que acabam por serenar com um copo do vinho que está dentro de um dos quartões que acompanha sempre os homens em todo o percurso. No jogo só podem participar os homens. Reza a história que outrora nas tascas - que na Chamusca eram mais de trinta – quem reinava eram os homens. Mas no jogo nem todos os homens entravam. Diz quem sabe que antigamente não era de bom tom para uma parte da “elite” da vila juntar-se aos “bebedolas” que entravam na manifestação. Hoje já ninguém liga a isso. As paragens vão-se sucedendo ao longo de várias horas. É no Central, no Manuel das Mulas. No Custódio. Nesta o “Polícia” entra no estabelecimento e sai com um bacalhau e dois chouriços pendurados à cintura. Produtos que vão servir para petiscar ao longo da jornada. Passa-se depois pelo Coradinho e pelo Campino. À chegada ao Santa Maria, a tasca que ainda mantém a traça castiça, as coisas começam a ficar turvas. O vinho é bom e a carga já começa a afectar alguns. Os mais velhos garantem que é na Rua da Formiga que se encontram as melhores ementas. É nessa zona que está o Bezouro, um restaurante que tem boas Pataniscas. O José Luís Amaro abre as portas da sua garagem onde se descobre uma mesa cheia de toucinho, chouriço assado e um naco de marmelada. Doce, que no entender de alguns serve para cortar o efeito do álcool. O José Mira opta por fornecer os tradicionais enchidos da vila, a morcela de arroz, a negra e o chouriço. A câmara municipal também está na rota. Como o presidente (Sérgio Carrinho) não estava na altura, é o vice-presidente (Francisco Matias) que vem à rua para jogar. Mas leva com um cântaro de “rejeitada”, que se estilhaça no chão. A procissão segue então até ao café mais próximo onde é dada ordem para uma rodada. O jogo acaba, umas tascas mais adiante, no quintal do agricultor António Guita que preparou um panelão de couve com feijão e uma travessa de ovos mexidos. Bebem-se os últimos copos e que fazem vir ao de cima a inspiração para elaborar umas quadras para o Enterro do Galo, que acontece no mesmo dia à noite e que é feito por uma parte dos elementos do grupo.Custódio Aranha “O jogo faz parte da identidade da vila”Custódio Aranha, com 59 anos, participa no jogo do quartão há 39 anos. Recorda que na década de sessenta a tradição esteve quase a acabar porque algumas pessoas tinham vergonha de participar." Mas um grupo de carolas, no qual me incluía, lutámos para que a tradição não morresse”, lembra.“Há muitos jovens a participar, o que garante a continuação do jogo nos próximos anos”, sublinhou Custódio Aranha, acrescentando que o jogo do quartão “faz parte da identidade cultural da vila e das suas gentes”.Vítor Cabaço“Adiei viagem à Holanda para poder Participar”Vítor Cabaço, 55 anos, começou a acompanhar o jogo aos dez anos. Nunca deixou que a tradição se perdesse e tem feito tudo para estar presente. “Era para partir hoje para a Holanda, mas adiei a viagem para poder estar aqui a cumprir a tradição”.“Sou, juntamente com o Custódio Aranha, o Chico Pedro, o Custódio Carapinha e o Chico Polícia, dos mais velhos a participar. Infelizmente outros colegas têm falecido, quase um por ano, como o Caseca, o José Manuel Pernita, o António Claro. Companheiros que tinham um carisma e um amor por isto que era impressionante”, disse com nostalgia Vítor Cabaço.Samuel Eugénio“Já sou um viciado pela tradição”Samuel Eugénio, de 28 anos, começou a jogar o quartão há cinco anos, influenciado pelo pai que é um dos mais antigos jogadores ainda em actividade.“Agora sou um viciado pela tradição. Está nas nossas mãos, dos mais jovens, dar continuidade a isto”, comentou. Apesar de trabalhar e viver em Lisboa, Samuel não quis perder o jogo e tirou férias na quarta-feira de cinzas para ir de propósito à Chamusca participar no jogo. “Só um grande problema me fará deixar de vir. Enquanto puder nunca permitirei que a tradição do jogo do quartão morra”.Francisco Redol “Vim por curiosidade”Francisco Redol participou este ano pela primeira vez no jogo. Tem 23 anos e é forcado no Grupo de Forcados Amadores da Chamusca. Por ser o caloiro nas lides do quartão, foi a ele que os colegas mais vezes atiraram a bilha. “Vim mais por curiosidade. Mas também para beber uns copos com os amigos. Estou a gostar”, dizia Francisco entre a ida e vinda do cântaro.Apesar de assistir todos os anos ao jogo, Francisco nunca sentiu vontade de entrar, até que este ano decidiu aceitar o desafio devido à influência dos amigos. “Arrisquei porque entendo que esta é uma actividade que marca a Chamusca, marca os amigos e, a partir de agora, quero também ajudar a manter a tradição”.
O ritual do quartão mantém-se, mas a tradição já não é o que era

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