uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

O Concerto

Aurélio Lopes

E enquanto tudo isto acontece, e por incrível que pareça, o mundo continua a rodar! O G. I. Joe “Bush” continua a sua “cruzada contra o mal” no estratégico Médio Oriente e os “média” continuam vendendo a guerra como se de um “video game” se tratasse. E enquanto contabilizamos avanços e recuos e equacionamos níveis de dificuldade, gradual e naturalmente somos levados a esquecer que a grande maioria das pessoas e dos governos do mundo estão contra esta guerra! Não devido ao regime iraquiano (sublinhe-se) mas,… apesar do regime iraquiano!

O Hortênsio, presidente da colectividade, não cabe em si de contente. Então não é que o seu prestígio (e conhecimentos, já se vê), conseguiram que a Orquestra Sinfónica Nacional viesse fazer um espectáculo ao salão nobre da Sociedade Artística Meadense. Onde é que Póvoa das Meadas já viu um espectáculo assim?!!São mais de cem músicos reflecte o Hortênsio! E não são quaisquer músicos! São verdadeiros músicos, como, (com parcos resultados, diga-se de passagem) vem tentando explicar aos seus pares; com curso do Conservatório e tudo!É certo que a música é, assim, um bocadinho… digamos,…a dar p’ró chato! Ah! Mas vai valer a pena! Oh, se vai!! Quanto mais não seja para fazer ver àquela “beatada” da Comissão Paroquial c’a mania que é superior!Eufórico, o Hortênsio, vai cumprimentando de passagem sócios e correlegionários enquanto se dirige, de novo, ao “salão nobre”. O frenesim que aí vai! É o acrescentar do palco, a montagem da estrutura sonora e de iluminação, a criação de um cenário apropriado.Não que o Hortênsio não preferisse um bucólico cenário rural. Algo como um simpático burrinho, de olhar humilde e carácter estóico, transportando de volta a farinha depois de moída no rústico moinho situado no monte sobranceiro à aldeia! Contudo, o trambolho do assessor cultural da Câmara, inexplicavelmente, preferiu plantar aí um mostrengo de um enorme pano preto! Vejam só!Não abdicou o Hortênsio, contudo, de enfeitar à sua maneira a frente do palco com ramos de mimosas floridas, as paredes com mantas regionais, alfaias e utensílios agrícolas e o tecto com balões e faixas pendentes de papel multicor. O salão está um brinco! Tudo está a postos para o grande momento!Ao começo da tarde chega o camião do material. Técnicos de ar entendido e atarefado iniciam o transporte e a instalação de aparelhagens e instrumentos. A curiosidade atrai uma multidão de mirones. A expectativa para o espectáculo sobe em flecha! E com redobrada impaciência aproxima-se, finalmente, a hora do espectáculo!Contudo, cedo se verifica que a esperada afluência tarda em chegar. Meia hora antes apenas três ou quatro pessoas se encontram na sala. A Dona Cremilde, esposa do Sargento Patacas, cujos ares de “prima dona” despertam quase sempre animosidade geral, não podia faltar. A Gertrudes, solteira militante, acompanhada da sobrinha, uma magricela deslavada que pisca repetidamente os olhos aos intensos focos dos holofotes, senta-se timidamente nas últimas filas. O Xavier, presidente da Junta, acompanhado como sempre da “primeira dama” e muito compenetrado do seu papel, chega pouco depois. E a isto se resumem os presentes! Isto é, se não contarmos com o “Caturra”, ébrio profissional que emborca a sua enésima cerveja (fazendo juz à sua alcunha de “seca-adegas”) encostado periclitantemente a um canto do palco.Dez minutos depois chega a comitiva municipal. Presidente, adjunto e dois vereadores. Distribuem sorrisos mais ou menos amarelos ao constatar a escassa assistência, antes de se sentarem nos lugares reservados.Cada vez mais amarelo está igualmente o Hortênsio, comentando entredentes com o Bonifácio, seu braço direito, o malfadado costume povoense de chegar sempre à última da hora.Os minutos parecem agora galopantes. A “Mari Galhordas” entra fogosamente arrastando o marido cuja cara de poucos amigos mostra bem a sua disposição por ter de perder a habitual noite de chinquilho. E logo agora que as coisas estavam, finalmente, a correr de feição. Uma ruidosa dezena de jovens chega, inesperadamente, quase à hora do espectáculo. Detêm-se, contudo, à entrada da sala. Pelos comentários trocados, entrecortados de risinhos contidos, percebe-se que pensavam que “ia haver baile”. Um pouco comprometidos dão meia volta e dirigem-se, céleres, de volta, ao “Cocas’ Bar”.A hora do espectáculo chega entretanto. O Hortênsio cochicha ao ouvido do Sr. Presidente. Frases abafadas, mas tensas, que ecoam na sala quase deserta.Entretanto os músicos dão entrada no palco tentando arrumar-se num espaço, apesar de tudo, exíguo. Cadeiras mudam de lugar, fios são desviados, pautas colocadas e recolocadas, instrumentos manuseados.A azáfama acorda o “Caturra” da dormente catalepsia. Surpreendido observa com os olhos pitosgas e entreabertos, nebulados pelo álcool, a fremente agitação no palco e a sala quase deserta.Parece até, durante alguns momentos, sustentar uma conversa consigo próprio, enquanto coça, pensativamente, o “cocuruto”. Abana finalmente a cabeça, como que resignado, e suspira profundamente num lamento que “a pinga” torna roufenho e titubeante: “Ora porra, já acabou! E eu cá q’gosto tanto de bandas!” E abanando ainda a cabeça, bem reveladora de desânimo que lhe vai na alma, dirige-se, cambaleante, para a saída!!PS - E enquanto tudo isto acontece, e por incrível que pareça, o mundo continua a rodar! O G. I. Joe “Bush” continua a sua “cruzada contra o mal” no estratégico Médio Oriente e os “média” continuam vendendo a guerra como se de um “video game” se tratasse. E enquanto contabilizamos avanços e recuos e equacionamos níveis de dificuldade, gradual e naturalmente somos levados a esquecer que a grande maioria das pessoas e dos governos do mundo estão contra esta guerra! Não devido ao regime iraquiano (sublinhe-se) mas,… apesar do regime iraquiano!

Mais Notícias

    A carregar...