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Suspeições

Aurélio Lopes

“Os sujeitos dos cargos políticos sentem agora que a sua palavra é encarada apenas como retórica. Sentem-se de alguma forma fragilizados na sua credibilidade e particularmente vulneráveis a denúncias e suspeições, surjam elas a propósito ou a despropósito.”

Acusado pelo Presidente da Junta de Freguesia de Paialvo de apresentar um relatório de gerência com dívidas três vezes inferiores à realidade, o executivo municipal de Tomar decidiu encomendar uma auditoria às suas próprias contas!Argumenta, contudo, que o valor avançado é “inconcebível”, que mesmo que possam existir algumas incorrecções “nunca atingirá um décimo do valor referido” até porque, conclui, corresponde “quase ao total do exercício de gerência da autarquia”. Em suma, considera total e perfeitamente descabida tal acusação.Apesar disso, dispõe-se a gastar largos milhares de Euros de um erário, concerteza depauperado, procurando-se assim o desejado aval de terceiros.Com tal decisão reconhecem, implicitamente, que os serviços técnico-financeiros da Câmara, bem como os respectivos responsáveis políticos, não são credíveis! Pelo menos não suficientemente credíveis para fundamentar e avalizar o rigor das contas de um simples relatório de gerência. Mais importante do que saber quem tem razão neste caso (ou se a razão, em rigor, assiste a alguém) é constatarmos a frequência crescente com que surgem entre nós situações desta natureza e apercebermo-nos de que as mesmas espelham cada vez mais o país que temos: um país atingido pelo descrédito mais completo das instituições públicas!Que a população não acredita nos políticos é hoje, algo, perfeitamente claro!Gradualmente porém, as instituições vão-se apercebendo das implicações daí decorrentes e, deste modo, problemáticas que normalmente conduziriam apenas a simples esclarecimentos (públicos ou não), por parte dos responsáveis, tornam-se situações dramáticas pela omnipresença inquietante do estigma da desconfiança.Os sujeitos dos cargos políticos sentem agora que a sua palavra é encarada apenas como retórica. Sentem-se de alguma forma fragilizados na sua credibilidade e particularmente vulneráveis a denúncias e suspeições, surjam elas a propósito ou a despropósito.Sofrem assim as consequências inevitáveis de décadas de vivências políticas em que, entre aquilo que se pensa e o que se diz se adivinham apenas vagas semelhanças e, entre o que de diz e o que se faz, medeia todo um universo de demagogia.Na falta de outras estratégias, que a desconfiança latente impossibilita, recorre-se então cada vez mais (ou ameaça recorrer-se), à arbitragem de empresas da especialidade, tidas como credíveis e insuspeitas. Em suma, busca-se em alguém exterior aos suspeitosos interesses em questão, a credibilidade que cada um sente ter agora em défice.Se os visados forem executivos anteriores, departamentos geridos por personagens “non gratas” ou instituições onde se pretendem substituir os respectivos “boys”, as auditorias servem, inclusivamente, de instrumento político oportuno e conveniente de múltiplas utilizações. Por exemplo, de implícita ou explícita censura pública dos antecessores nos cargos ou de colaboradores indesejados ou, ainda, de justificação (à priori ou à posteriori) de decisões problemáticas ou impopulares.Se, como acontece no caso presente, incide sobre a sua própria acção, poderá servir (após avaliados os previsíveis resultados e correspondentes implicações políticas), como manifestação pública de completa transparência. A decisão de encomendar uma auditoria (independentemente dos eventuais resultados) torna-se assim, só por si, um acto político determinante, pretensamente de gestão, mas cujas implicações são, na realidade, muito mais vastas.Tende-se portanto a usar e abusar das mesmas. Algumas bem dispensáveis, muitas não aplicáveis por insuficiente credibilidade dos resultados ou inoportunidade política conjuntural. Não obstante, todas pagas principescamente!À custa, é claro, do erário público!Não se pode, contudo, fazer uma auditoria a cada acto de gestão potencialmente duvidoso num país em que a desconfiança e a suspeição se tornaram lugar comum.Não se pode e, se pudesse, a sua vulgaridade esvaziar-lhe-ia, concerteza, a eficácia.Aliás, já hoje, a recorrência sistemática a esta estratégia contribui cada vez mais para vulgarizar a desconfiança. E se em termos imediatos (provados os não os pressupostos causais) são apenas alguns cuja imagem fica afectada por laivos de ilegalidade e de corrupção, a médio prazo é toda uma classe política que sofre as consequências de um clima de suspeição que se vai generalizando.No fundo, se a classe política não confia em si, pergunta o cidadão comum, como posso eu confiar?!E quando políticos, advogados, figuras públicas vistas como impolutas e inatacáveis, vão caindo dos pedestais, quando valores morais ancestrais desaparecem, entretanto, na voragem da modernidade e outros, novos, carecem ainda de referências operativas, resta o descrédito, a desconfiança,.. a suspeição!Resta uma sociedade em crise de valores, perdida nos meandros do ser e do parecer!PS – Caricato é quando, como em Santarém, se gastam dezenas de milhares de Euros numa investigação desta natureza e os resultados surgem manifestamente afectados, entre outras coisas, pela deficiente colaboração dos próprios serviços municipais!Já pensaram em encomendar, à boa maneira nabantina, uma auditoria… à auditoria?

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