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O Discurso

O vereador Felisberto não estava à espera disto. Vindo em representação do Município ao aniversário da Sociedade Recreativa e Cultural Reguenguense, era suposto tudo não passar de mais uma oportunidade de salutar convivência gastronómica em volta de uma substancial sopa de pedra e respectivas febras assadas, devidamente regadas, é claro, com “uma pomada de estalo” e concluídas com o já tradicional “digestivo caseiro” de comprovada qualidade.Contudo o “Chico Faneco”, presidente da Associação (com pretensões locais de carreira política), não pretende deixar passar em claro a presença do vereador, sem que o mesmo profira algumas palavras de elogio à instituição, que aquele, naturalmente, pretende capitalizar em seu proveito.Um pouco zonzo com os treze graus do “tintol” consumido, o vereador ergue-se lentamente. Curiosamente a sala de baile, onde se realiza a refeição, parece agora um pouco instável. O chão apresenta alguma fluidez, parecendo tremer um pouco ao sabor dos aplausos que aqui e ali emergem, numa assistência, contudo, maioritariamente indiferente. Disfarçadamente agarra-se à mesa embora, curiosamente, também ela não pareça muito firme.O levantar desencadeia um proliferar de “shius”, pronunciados entredentes, mas cuja eficácia esbarra na disposição eufórica e incontrolável dos comensais. Eis quando um berro colossal do “Faneco”, seguido dum breve mas firme “puxão de orelhas” produzido com cara de poucos amigos, corta cerce a maioria das conversas e consegue, a custo, alguns momentos de silêncio.O vereador tosse circunspecto provocando assim, de alguma maneira, um adensar das coagidas expectativas. Lentamente e algo contrariada, a sala aquieta-se.Entretanto o autarca passa mentalmente em revista o que sabe e não sabe sobre a instituição. A inquietação percorre-o quando se apercebe que não sabe nada de nada exceptuando, é claro, o nome e os anos de existência que, da parede do fundo, ressaltam brilhantes em letras enormes e fluorescentes.Reage contudo rapidamente. Não é por acaso que ele, o filho do “Tonho Ferreiro” da Várzea Longa chegou onde chegou. Aliás, desde que se levantou, sente-se até mais leve e mais liberto. Capaz, na verdade, de proferir um discurso inesquecível!“Caros amigos, concidadãos reguenguenses (exclama alto e bom som) estou aqui para lhes trazer as felicitações do Senhor Presidente da Câmara e informá-los que a autarquia olha com particular atenção e desvelo a acção desenvolvida por esta casa nos seus (olha de soslaio para inscrição cintilante) 45 anos de uma grandiosa e profícua existência!” Respira fundo, e pisca os olhos tentando clarear uma visão teimosamente pouco nítida: “Porque todos não somos demais para fazer deste concelho, um lugar onde apeteça viver. E para isso contamos como todos os reguenguenses, particularmente com aqueles organizados em torno desta prestigiada associação!”Pigarreia, aclarando a garganta, enquanto nos olhares algo carrancudos da assistência perpassa uma expressão de relutante paciência: ”Deste modo, o executivo que eu represento, faz questão de afirmar, de forma clara e inequívoca, a sua solidariedade e reconhecimento para com os esforços aqui desenvolvidos na persecução e promoção da cultura e do bem público!”Aqui faz uma pausa, aproveitando para emudecer a garganta com mais um gole de “carrascão” e, com um gesto displicentemente teatral, declina extemporâneos aplausos de alguns mais impacientes; “Sim! Cultura e bem público promovidos com sacrifício pessoal e familiar por sócios e dirigentes (e aqui inclina a cabeça para o “Faneco” que, ufano mas reservado, agradece formalmente) da Sociedade Musical Regenguense!”Um burburinho de escandaloso desagrado percorre a sala à referência nominal aos detestados rivais da “filarmónica”, enquanto alguns mais exaltados, afoitos ou vulneráveis ao efeito da “pinga”, gritam ostensivamente a necessária rectificação; “Sociedade Recreativa e Cultural!”Mas a gafe não inibe o Felisberto cuja disposição medeia agora entre a euforia da inconsciência e a percepção vaga de uma realidade cada vez mais distante.“Ou isso,...” concede com indiferença!O ambiente está agora mais enevoado. Na disposição ofendida da assistência que vê, aliás, eternizar-se o reinicio do festim mas, igualmente, na visão cada vez mais toldada do orador. As suas pernas apresentam já uma curiosa tremedeira. A cadeira surge como uma desejada tábua de salvação!Teatralmente levanta os braços ensaiando o clímax final: ”Estais assim todos de parabéns: por aquilo que fizestes no passado e fareis no futuro!”E numa voz que cada vez se aproxima mais das tonalidades gritantes, termina de dedo em riste em jeito de apoteose: “Porque vós sois o fim e o princípio do humanismo solidário; o ying e o yang do associativismo, o alfa e o ómega do voluntariado!” E, desequilibrado pelo balanço final da oratória, mal tem tempo de cair pesadamente sobre a cadeira que, acto contínuo, reagindo à sobrecarga de esforço, se esfrangalha literalmente, provocando uma humilhante e aparatosa queda. Uma trovoada de alegres aplausos abate-se, então, sobre a sala!

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