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Histórias de uma barbearia centenária

Dois barbeiros à beira dos noventa continuam a praticar a arte em Abrantes

Luís e José Nogueira são dos poucos, e os mais velhos, barbeiros de Abrantes. Os irmãos aproximam-se a passos largos dos 90 anos e continuam o negócio que herdaram do pai, que, em 1900, abriu a barbearia Benamor, rebaptizada pelo povo como barbearia do Camilo

É a alma dos centros históricos que vagueia pelas ruas estreitas e portais gastos pelo tempo. São as velhas lojas e os seus inquilinos, tombados pelo peso dos anos. A par da modernização dos espaços, bem perto do edifício da Caixa Geral de Depósitos, abre-se uma porta de vidro e ferro pintado de verde: a barbearia Camilo. Lá dentro, no fundo da sala, Luís e José Nogueira – os Camilos - descansam enquanto aguardam que um cliente se sente nas velhas cadeiras verdes, não sem antes perguntar se pode cortar o cabelo.Têm as provectas idades de 90, daqui a dias, e 88 anos, são irmãos, ambos viúvos, e barbeiros desde que entraram na vida activa. Fizeram barbas a 10 tostões, cortaram cabelos a três escudos e cinquenta centavos e, nessa altura, as alternativas de corte eram escassas: à garçonne, mais compridito, e à joãozinho quando a máquina manual e a tesoura eram mais generosas.A barbearia de Luís e José Horta da Conceição Nogueira foi fundada em 1 de Julho de 1900, no prédio hoje ocupado pela Caixa Geral de Depósitos, bem no coração de Abrantes. O proprietário deu-lhe o nome de Barbearia Benamor em homenagem a um grande amigo que tinha uma perfumaria na baixa de Lisboa com o mesmo nome. Mas a designação não pegou. O dono do novo estabelecimento abrantino chamava-se Camilo e a barbearia Benamor depressa passou a barbearia Camilo. “Ainda hoje somos conhecidos pelos Camilos”, diz Luís Nogueira com uns expressivos olhos azuis que os quase 90 anos de vida não nublaram. “Dia 23 de Fevereiro faço 90 anos, nasci em 1914”.Luís Nogueira saiu da escola com 12 anos, foi trabalhar com o pai, nunca fez outra coisa na vida e continua a gostar do que faz. José ainda passou pelo comércio, por pouco tempo, e seguiu as pisadas do irmão mais velho. “Não gosto da profissão, mas não tive outra hipótese e terminei a quarta classe com 18 valores”. José Nogueira gostaria de ter continuado a estudar, mas na década de 20 do século passado quem vivia em Abrantes e queria continuar a estudar apenas tinha como alternativas a escola industrial em Tomar ou o liceu em Santarém - “e não havia dinheiro para isso”.“Na altura, só quem tinha muito dinheiro podia estudar, havia os muito ricos e os muito pobres. A estes cabia-lhes as profissões de alfaiate, sapateiro, carpinteiro, barbeiro e coisas assim”, reforça Luís Horta sentado na sua cadeira de braços, pintada de amarelo.Fala pausadamente de olhos semi-cerrados à espera que chegue algum cliente, porque esses continuam a aparecer. “Dantes havia nove barbearias em Abrantes, hoje há três e quatro barbeiros, dois deles somos nós e os mais velhos”, continua.Na zona a profissão também está em vias de extinção. “Temos clientes de todo o concelho, vêm do Souto ao Rossio, passando pelo Tramagal… Já não há barbearias por aí”.Pelas cadeiras agora verdes, de pés redondos, que datam dos anos 50, já passou muita gente importante: “Palma Carlos, que foi primeiro-ministro, vinha aqui cortar o cabelo sempre que estava em Abrantes a fazer julgamentos, muito antes do 25 de Abril”.Dantes os grandes dias de trabalho eram à quarta e ao sábado: “Metia pela noite dentro. As máquinas eram manuais e exigiam força nos pulsos. Chegávamos à noite com os pulsos a doer, já nem os sentíamos”, contam.Barbas e cabelos eram uns atrás dos outros, depois vieram as gilettes e as pessoas começaram a fazer a barba em casa. “Hoje já não fazermos barbas, só cortamos cabelo”. Mas actualmente os clientes exigem mais: “Às vezes nem eles sabem o que querem. Corte mais daqui, mais dali e quando está pronto ainda é preciso cortar mais um bocadinho em cima. É preciso uma paciência...”, desabafa Luís Nogueira, um pouco cansado destas modernices.Sobre um armário também pintado de verde, guardando relíquias de fotografia, está um majestoso leão metalizado. “O meu pai era do Sporting e nós também somos. E eu sou o sócio número 1 do Sporting Clube de Abrantes e o meu irmão o número 2”, diz Luís Nogueira.Entretanto, a estatueta leonina tem a sua própria história: “O Presidente da República, quando esteve em Abrantes, pôs um cachecol à volta do pescoço do leão para tirar uma fotografia. Ele já cá tinha estado antes, quando era só advogado, a cortar o cabelo”.Em mais de 100 anos de existência da barbearia muita história há para contar. Nas vitrinas continuam expostos os velhos objectos, utilizados noutras épocas. Caixas metálicas com esponjas amarelas para espalhar o pó de talco depois da barba, velhas navalhas e tesouras, sabões para a barba e cicratizantes, há de tudo. “Tínhamos clientes com 40 anos de casa e mais, o arquitecto Castelo Branco vinha de Lisboa e só cortava o cabelo aqui, depois veio o filho e mais tarde o neto que já é um homem”, recordam.E os miúdos? “Bom, os gaiatos tinham mais medo do barbeiro do que sei lá o quê. Era um berreiro sempre que viam as batas brancas que nos usávamos até abaixo. Eles tinham alguma razão porque as máquinas arrepelavam um bocado, não era nada como as eléctricas de agora”.Quando a barbearia abriu, Abrantes era pouco maior que uma aldeia. “Não havia lojas e nós vendíamos camisas, gravatas e perfumes que vinham da perfumaria desse tal amigo do meu pai. O comércio era da câmara para cima, a escola Solano de Abreu era a praça de touros e para baixo não havia nada. O quartel era o antigo campo de futebol. Na encosta para Alferrarede era só campo. Olhe, era de tal forma que para o liceu vir para Abrantes tiveram de juntar a população de Alferrarede e do Rossio senão não havia gente que justificasse o liceu”.Outros tempos... Mas os clientes continuam a aparecer e Luís e José – “agora não estou a trabalhar por causa do coração, tenho uma angina de peito” – prosseguem a sua vida de mais de 70 anos de actividade: “Abrimos às nove e fechamos às sete (19 horas). Se a reforma fosse maior talvez já tivéssemos fechado a barbearia”, dizem. Porém cada corte de cabelo rende 5 euros e sempre ajuda, mas fundamentalmente é uma ocupação: “Íamos para onde? Somos ambos viúvos, eu (José) tenho um filho, ele não tem filhos, temos uma irmã que está no lar, a outra morreu. Íamos para o banco do jardim? Aqui sempre vamos conversando com este e com aquele que aparece por aqui...”.Margarida Trincão

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