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Dá Deus nozes a quem não tem dentes

Dá Deus nozes a quem não tem dentes

*Margarida CabeleiraHá pouco mais de um mês uma idosa de 111 anos surpreendeu-me ao confessar, numa reportagem, que o maior sonho da vida dela era aprender a ler e a escrever antes de morrer. Alguém com 111 anos, que já passou por dois séculos, que viveu duas guerras mundiais, que comeu o pão que o diabo amassou, não quer morrer sem saber ler nem escrever. Fiquei sem palavras.No dia seguinte, passei por sua casa e levei-lhe um livro que tinha comprado para a minha filha, agora com sete anos, quando ela começou a juntar as letras. Chama-se mesmo aprender as letras.Maria de Jesus olhou para a capa colorida, abriu-o com as mãos calejadas pela vida dura e disse lentamente – “A, P, V”. O sorriso inundou-lhe a cara por instantes, ensombrada logo de seguida pela preocupação – “isto eu já sei, quero é aprender a juntar as letras”. Maria de Jesus não disse que queria ler e escrever apenas porque ficava bem. Disse-o porque tinha necessidade de o fazer. Porque não queria morrer analfabeta. Porque não queria morrer analfabeta...Quantos são os “letrados” que morrem analfabetos? Quantos são asfixiados dia a dia por leituras que nada dizem, por audições de programas televisivos que nada trazem? Serão estes mais letrados que Maria de Jesus?Na semana passada, à hora de almoço, não pude deixar de ouvir uma discussão veemente entre um homem e duas mulheres. Sentados na esplanada de um restaurante, discutiam acaloradamente sobre uma situação que tinha acontecido na televisão no dia anterior.Sou curiosa. Sou jornalista. Confesso que fiquei de ouvido atento à mesa do lado. O debate estava acalorado. “É bicheza”, afiançava uma das senhoras, enquanto a outra contrapunha – “diz-se bicharada”.O homem entrou na conversa. “Na minha terra diz-se as duas coisas”. A minha curiosidade aumentou. Do que estariam a falar? De algum documentário da National Geographic? De alguma descoberta científica relativa ao mundo animal?O homem tirou-me todas as dúvidas. “Olhem, tanto faz, bicheza ou bicharada a verdade é que lá na quinta o Zé Castelo Branco dá cartas”. Ah, o “Zé” Castelo Branco, a personagem actualmente mais conhecida em Portugal. A Quinta das Celebridades, o programa mais visto na televisão portuguesa. Um programa que ainda há dias um jovem de 18 anos apelidava de “desconstrutivo”. Mas que toda a gente vê. E comenta. E debate. E discute.O homem que estava sentado entre as duas senhoras não é um simples cidadão anónimo. É deputado, membro de uma assembleia municipal de um concelho do distrito de Santarém. Um homem eleito para defender os interesses da comunidade. Para aprovar e vetar decisões autárquicas.E numa semana em que até se discutia, em assembleia municipal, uma coisa importantíssima para o futuro do seu concelho, como um aterro de lixos perigosos, o senhor deputado entretinha-se com a bicheza. Ou a bicharada televisiva.Maria de Jesus está a aprender a ler e a escrever. Segundo o seu professor me disse já consegue formar palavras. A televisão, lá em casa, ficou para segundo plano.*Jornalista
Dá Deus nozes a quem não tem dentes

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