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Há dias em que nos sabe tão bem a profissão

*Alberto BastosO homem que está na minha frente, do outro lado de uma mesa corrida de madeira, tem um ar tímido e está pouco à vontade. A sala tem as paredes forradas com cartazes e fotografias de touradas. Reparo numa cabeça de touro embalsamada. É na Golegã, numa tarde de Verão e vem-me à memória uma outra tarde de um outro Verão quando dei comigo de olhos esbugalhados em frente à televisão, perante a imagem de um toureiro negro ajoelhado diante de um touro que parecia ainda mais hipnotisado que eu.Ligo o gravador e abro o bloco onde estão as perguntas que preparei. Ricardo Chibanga olha-me com um olhar amigável, tranquilo. Um olhar de quem está bem consigo, com os outros e com o mundo.Não sou aficcionado. Fui a uma tourada uma vez na vida a convite de alguém que me quis mostrar um dos mil tons da alma ribatejana. Quando leio uma crónica especializada não percebo metade do lá está. E de repente incumbem-me de entrevistar um matador de toiros. Acho que é esta a designação. Ainda por cima alguém que me impressionou quando eu era adolescente.Decido ir pelo lado da vida. Começo pela infância. Ele anima-se. Ilumina-se. E conta-me como um dia, fugido do bairro pobre onde morava, lá em Moçambique, na Lourenço Marques que agora se chama Maputo, teve uma visão transcendente. “Vi homens que pareciam deuses”, conta-me a sorrir, com aquele sorriso muito branco que é próprio dos homens de cor. Um milagre de Fátima profano, atrevo-me a dizer.O menino negro viu dois toureiros em trajes de luzes serem passeados em ombros pelas ruas da cidade. O sol de África fazia relampejar as lantejoulas. A multidão em delírio cantava. Dava vivas. Dançava. E foi ali, naquele momento, que se decidiu uma vida.“Vi homens que pareciam deuses”. A frase encheu a pequena tertúlia no rés do chão da casa. Fechei o bloco de notas e esqueci o questionário que levava. Há dias fantásticos na vida de um jornalista. Dias em que nos sabe tão bem a profissão. O toureiro que paralisava toiros com o olhar ergueu-se outra vez diante de mim, trinta anos passados e eu ali, esquecido da entrevista, a flutuar num sonho, ouvinte privilegiado de uma história contada pelo próprio herói.Três ou quatro horas depois, diante do computador, de novo a angústia de não ser capaz de cumprir a cartilha da isenção, do distanciamento, da objectividade. Esta profissão é um desafio permanente. Altamente recomendável para eternos insatisfeitos. Como se explica aos leitores a grandeza de um homem? Como se explica o sabor de uma laranja a alguém que nunca provou uma laranja?*Director

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