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A escrita como libertação

Domingos Lobo afastou os fantasmas da guerra através da literatura

Domingos Lobo, animador cultural da Câmara de Benavente, é um homem multifacetado. Teatro, jornalismo, romance e poesia fazem parte do currículo deste homem que regressou muito marcado da guerra colonial.

Faltavam poucos dias para o primeiro de Novembro de 1946 quando a mãe de Domingos Lobo se aventurou numa viagem solitária de comboio desde Lisboa até à aldeia de Nagosela, Santa Comba Dão. Deixou o marido, chefe de produção de uma fábrica de azulejos, na capital e rumou até ao lugar onde decidiu ter o filho. A mãe e a irmã cumpriram, como era tradição, o papel de parteiras.O nascimento de Domingos Lobo na terra de origem de Salazar não poderia ser mais acidental. O escritor, 58 anos, homem de esquerda assumido, actualmente residente em Salvaterra de Magos, viveu toda a sua vida em Lisboa.Estudou no Liceu Camões e foi lá que conheceu o professor que o haveria de influenciar para sempre – Virgílio Ferreira. Nos cafés, onde gostava de estudar, Domingos Lobo cruzava-se com frequência com grandes intelectuais e poetas da altura. Carlos Oliveira, José Gomes Ferreira e Mário Castrim, que publicou no suplemento do Diário de Lisboa o primeiro poema do escritor, eram presenças habituais no “Monte Carlo”.Antes de frequentar a Faculdade de Direito, que deixou no terceiro ano, Domingos Lobo inscreveu-se no Conservatório de Teatro. Quando foi mobilizado para a guerra colonial em 1967 – o Partido Comunista Português aconselhava os jovens a não desertar – transportou as duas paixões para o campo de batalha.Em Angola iniciou-se no jornalismo. Integrou a redacção do jornal ABC – Diário de Angola, trabalhou na rádio, mas não deixou a arte de palco. Tornou-se crítico de teatro e cinema e dirigiu a Companhia de Teatro de Angola. No regresso a Portugal passou pela Cena Aberta e pela Comuna e fundou em 1972 uma companhia teatral em Paço de Arcos, Oeiras. Fez teatro no Rossio, no Centro Cultural dos Trabalhadores do Comércio, e foi pioneiro nas sessões das 19h30, aproveitando o público que acabava de sair do trabalho e que não tinha possibilidades de regressar à capital à noite.Em 1982 acabaram os apoios ao teatro e Domingos Lobo decidiu acompanhar a esposa que acabava de ser colocada como professora na Escola Profissional de Salvaterra de Magos.Para sobreviver fez teatro radiofónico, escreveu os contos do dia para o Diário Popular, pagos a 150 escudos, e geriu vários restaurantes em Salvaterra de Magos. Hoje é animador cultural na Câmara de Benavente. Em carteira o autor do romance “Pés Nus na Água Fria” e do livro de poesia “Voos de pássaro cego” tem na forja a antologia da poesia erótica e satírica do século XVIII e um labiríntico enredo policial, sequência do terceiro romance, “As Máscaras Sobre o Fogo”. A obra sobre as suas memórias de Lisboa foi escrita em 15 dias e deixou-o preso a um estilo mais descontraído, mas nem por isso menos exigente da literatura.As marcas da guerraEm 1971 os jogos florais da emissora nacional, que desafiavam os ouvintes a escrever sobre a guerra colonial, revelaram o escritor e ex-combatente do ultramar, Domingos Lobo. “Em terras do fim do mundo”, um texto baseado num conjunto de contos já publicados no Jornal de Angola, mereceu o primeiro de muitos prémios que reconheceram a obra do escritor. A partir dessa primeira incursão literária surgia muitos anos depois, em 1993, o primeiro verdadeiro romance do autor - “Os Navios Negreiros Não Sobem O Cuando”.O livro surgiu numa fase avançada da vida do escritor porque, segundo explica Domingos Lobo, era necessário um certo distanciamento em relação à guerra.“Se o tivesse escrito logo a seguir à guerra possivelmente seria um romance muito azedo e impublicável. Vim da guerra muito ferido e foi preciso tempo para não escrever um romance apologético da minha posição como homem de esquerda em relação à guerra”.Hoje, o escritor não tem dúvidas em afirmar que o livro funcionou como catarse. “Enquanto alguns dos meus camaradas ainda hoje vivem traumatizados por essa experiência – e sei isso porque os encontro nos almoços de confraternização – eu, a partir do livro, libertei-me de uma série de fantasmas que tinha trazido da guerra”.Depois do romance de “libertação”, que em 1993 mereceu o Prémio Literário Cidade de Torres Vedras, Domingos Lobo não voltou a tocar na temática da guerra colonial nos romances.Ana Santiago

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