A música que anunciava a chuva
Manuel Luís da Silva, um dos últimos amoladores da região
Os amoladores vinham com as suas rodas e anunciavam a chegada com o toque característico de um pequeno instrumento de sopro feito de lata. Afiavam facas e tesouras, restauravam loiça, reparavam guarda-chuvas.
De dois em dois meses, Manuel Luís percorre as ruas de Santarém na sua velha bicicleta, onde a ferrugem mal deixa ver a cor vermelha original. É um dos últimos amoladores da região que ainda mantém a gaita para anunciar a chegada.O instrumento característico que anuncia a chegada dos amoladores já não é de lata, mas de plástico colorido. Quando se ouvia aquele som, dizia-se que era sinal de chuva, talvez porque os homens que calcorreavam as aldeias e cidades com a sua roda de esmeril, também consertavam as varetas dos chapéus de chuva. Ou “talvez porque chovia mais do que agora”, diz este artífice de um ofício em extinção.Manuel Luís nasceu há quase 60 anos, em Landal, concelho de Caldas da Rainha. Começou a cavar de enxada e picareta aos 10 anos. De vez em quando, ia com o pai também amolador, para o ajudar a transportar a roda de madeira e, nessas andanças, foi aprendendo o ofício. “Aprendi a ver porque o meu pai, nunca me ensinou nada”.Também ele andou pelas terras a fora, fizesse sol ou chuva, com a roda de amolador. Caminhava sempre a pé e a roda pesava pelos caminhos, muitos deles pouco melhores que carreiros. A roda grande, impulsionada pelo pé, fazia girar o esmeril onde facas, tesouras e navalhas de barba readquiriam o fio. Mas os amoladores prestavam muitos outros serviços. Punham fundos em tachos, baldes e panelas e tinham que carregar as chapas, gateavam as peças de loiça mais grossa (juntavam os pedaços da loiça partida com bocados pequenos de arame), porque dantes pouca coisa se deitava fora. “Agora vai tudo para o lixo”, comenta.Alto e magro, homem de poucas falas, Manuel Luís continua a amolar objectos de gume e a consertar chapéus, os outros arranjos já ninguém lhos pede. Ainda assim, vive melhor agora do que dantes: “Passei muita fome, ou melhor ela é que passou por mim”, conta enquanto calmamente acende um cigarro.Há mais de 30 anos que deixou a roda e passou a andar de bicicleta, a mesma com que continua a trabalhar. Já a comprou equipada e ainda se recorda que deu por ela 350 escudos. Preso ao guiador, o corno que todos os amoladores têm. “Estava sempre cheio de água para molhar as facas e as tesouras”, explica, mas também era para dar sorte. Atrás da bicicleta, uma caixa de madeira com ferramentas, e um chapéu de chuva quase sem pano, para lembrar que também sabe consertar chapéus.Há muito que deixou o Landal. Ainda em rapaz viveu nos Amiais, foi descendo e fixou residência junto ao Jardim de Cima, em Santarém. Com o peso dos anos, só de mês a mês ou de dois em dois meses dá a volta por Santarém e Alcanhões – “já não vou para mais lado nenhum” – e, normalmente tem fregueses certos. “Era bom que me arranjassem uma barraquita para eu fazer os consertos. Era bom para mim e para o povo de Santarém”, diz.Não gosta muito de contar histórias. Devagar, com a mesma calma com que amola a tesoura, conta que teve uma vida muito árdua, mas sempre gostou da profissão. Não se lembra de ter nenhuma reclamação – “fazia sempre o trabalho bem feito” – e tem pena que mais gente não siga o ofício. “Andam para aí uns rapazes novos, mas não percebem nada disto e já não há ninguém que queira aprender”. Também dos seus cinco filhos nenhum lhe quis seguir as pisadas e só um deles tinha algum jeito para a arte.Margarida Trincão
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