António Dias Lourenço o filho do ferreiro que se tornou operário ainda menino
Trabalhou nos aviões de Gago Coutinho e Sacadura Cabral e foi amigo de Redol, Torga e Soeiro
António Dias Lourenço, filho de uma costureira e de um ferreiro, tornou-se operário cedo quando ainda era menino e aos 13 anos aderiu ao Partido Comunista Português. Amigo e companheiro de aventuras dos escritores neo-realistas do seu tempo, foi director do Avante durante 17 anos e ainda hoje tem a sua secretária na redacção do jornal. Aos 92 anos mantém um invejável sentido de humor que o leva a dizer que Alves Redol não gostaria da estátua que lhe fizeram. “Parece que está na casa de banho”, comenta.
Mora em Lisboa, mas conhece bem Vila Franca de Xira…Nasci em Vila Franca. Num bairro da ponta ocidental. Já quase a passar à clandestinidade morei naquela travessinha que vem do chafariz. O Alves Redol era o principal, mas eu e vários jovens com tendências intelectuais e políticas demos grande impulso a todo esse movimento literário que é conhecido naquela zona. Como vivia a sua família?A minha mãe, filha de pescadores varinos, era costureira e o meu pai era ferreiro. Tínhamos uma vida desafogada. Não eram capitalistas, mas ganhavam bem. A oficina do meu pai ficava em Alverca. Fui para Lisboa e depois é que vim morar para Alverca. Fui trabalhar para a aviação. Não teve tempo de ser menino? De ir brincar para o Tejo?O Tejo era uma parte da minha actividade desportiva. Também jogava futebol no clube de Vila Franca. Cheguei a meter três golos no adversário. Tinha que atentar na direcção do vento para que atirando do lado da baliza a bola pudesse fazer a curva. Não era nada fácil…Foi amigo de infância do Redol…Sim. Muitas vezes quando a maré já estava vazia íamos de barco até uma rocha que ficava um bocadinho fora do Tejo no momento da vazão da maré. Descíamos e íamos apanhar o marisco. Éramos íntimos amigos. Como ocupavam o tempo?Éramos jovens profundamente ligados à intelectualidade e ao jornalismo. Aos 13 anos aderi ao Partido Comunista Português. Já eu escrevia na imprensa. Organizávamos aulas no velho sindicato que funcionava como escola. Chegamos a juntar 50 ou 60 trabalhadores com mulheres. Costureiras e fiadeiras e operários. Aprendi a falar Esperanto para poder dar aulas à malta. Tínhamos muita actividade literária e com forte participação nesses jornais da época. Não só de Vila Franca e do Ribatejo, mas também de Lisboa. “O Diabo” era nosso. Eu escrevia até com pseudónimo para aliviar muita coisa do trabalho humano da zona, das fábricas e dos campos. Como sabe Vila Franca era a pátria do campesinato e da cultura, das lezírias. Como é que o senhor se apercebia da chegada dos gaibéus, dos ratinhos, dos caramelos?Ah, então! Eles atravessavam o Tejo ali em frente à estação. Não havia a ponte. Havia uma barraca à borda do Tejo. Era um camarada que lia a imprensa diária aos trabalhadores que vinham do Norte trabalhar o campo e atravessavam o Tejo – gaibéus, ratinhos e caramelos – vendia-lhes os copos e dava-lhe as informações do que se ia passando no mundo. No seu livro sobre Vila Franca fala nos proprietários que soltavam os cães e na esposa caprichosa que pedia ao marido para baixar os ordenados para ter um colar de pérolas… Como se apercebia desta realidade?Nós tínhamos um contacto estreito com os camponeses que não podiam passar para o lado de lá sem tomar o barco. Houve patrões agrários que recusaram que as mulheres dos camponeses ficassem com os seus maridos…E não lutavam contra isso?Lutavam, mas às vezes não tinham força. Despediam-nos. A pouco a pouco foram encontrando a força para ir rompendo com isso. As situações de injustiça revoltavam-no?Sim, sim. O meu pai que era ferreiro não pendia muito para a literatura, mas a quaisquer acções de teatro que havia em Lisboa ele levava os filhos. Isso foi tocando a mim e a outros que fomos ganhando força intelectual. Pudemos entrar em contacto com autores de grande mérito e até às vezes com eles próprios…Por exemplo?Olhe, o Miguel Torga. Uma vez eu, o Redol e ele passámos o Tejo para o lado de lá. Tinha acabado a Guerra Civil de Espanha. Estávamos a falar os três sobre o assunto. O Torga, o Redol e eu a certa altura começámos a cantar a internacional (hino dos partidos comunistas e socialistas). A certa altura diz o Torga: “Caramba, nunca pensei que alguma vez se pudesse cantar a Internacional alto neste nosso Portugal!”. É claro. Ninguém mais podia ouvir. Senão nós três. Estávamos sozinhos.Como conheceu Redol?Ele começou a escrever num jornal do Ribatejo onde eu já estava ligado. Fala-se muito nos passeios do Tejo, mas fomos nós que os criámos. O Redol e eu fazíamos o trajecto entre Vila Franca e o Carregado. Saíamos do barco e íamos petiscar para o campo. Uma gaita! Íamos comer, mas íamos era conversar sobre política. No Tejo não havia ninguém para nos ouvir. Ali ficávamos e ali fazíamos grandes reuniões. Já nas propriedades do Palha Blanco. De que é que falavam?Da política, da acção de massas, do trabalho intelectual, das empresas. Um dia o amigo transforma-se em escritor…O Redol a certa altura começa a escrever. E um dia em Vila Franca chama-me. Tinha seis folhas de papéis almaço escritas à mão. ‘Olha, quero que tu leias e que me digas se sou capaz de escrever um romance’. Então eu pus-me em sentido, em jeito de brincadeira: ‘Decreto número um, artigo primeiro: Declaro que tu és capaz de fazer um romance’ (Risos). Claro que era capaz de escrever romances, como sabe, fez vários… mas esse era o primeiro. Chamava-se “Glória – uma aldeia do Ribatejo”. O senhor que o conheceu bem acha que se gostaria de ver retratado nesta estátua que tem em Vila Franca de Xira?À certa que não. Em Vila Franca nenhum de nós gostou disso. Já está feita há uns tempos. Parece que está na retrete. Já viu? Não gostámos nada. Apesar de dizer que costumava inspirar-se junto ao Tejo…Nós só não acabámos com isso porque a estátua foi construída num terreno particular. O dono da terra podia dizer que sim ou não. E lá está o Redol. Parece que está na casa de banho…
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