O operário revolucionário
Porque é que não foi aprender o ofício do seu pai?Eu fui construir e reparar aviões. Era uma coisa muitíssimo importante. Um trabalho de rigor e de tempo. Lembro-me que um militar que tinha que partir para um raid das antigas colónias tinha o avião amarrado à borda do Tejo. Veio uma ventania e levou o avião para uma ilha no meio do Tejo. Veio ter connosco: ‘Meus amigos, não quero que trabalhem mais que aquilo que podem, mas tenho a data marcada para a partida e agora está o estupor do avião escangalhado’. Nós fizemos um trabalho esforçado para ele partir naquele dia. Como paga fez um voo com cada um dos rapazes que tinha ajudado a reparar o avião. A veia revolucionária surgiu na aviação?Era aprendiz de torneiro e até introduzi melhorias nas condições de trabalho. Havia um engenheiro que um dia me quis arrancar para fazer trabalhos com menos tempo. ‘Olhe, veja lá se me consegue fazer isto com menos tempo’. E eu fiz a coisa. Disse que não me responsabilizava se a máquina se escangalhasse. Fiz o trabalho rápido, mas depois para eles não ficarem com essa tabela para os trabalhos resolvi escangalhar a máquina. Disse-lhe: “Vê o que aconteceu por trabalhar com a velocidade que você me impôs?” Tudo era feito de propósito para não criar um horário de trabalho brutal. Conheceu Gago Coutinho?Conheci! E Sacadura Cabral. Lá na aviação. Trabalhámos para ele, aliás. E eles tinham-nos em grande apreço. Foi o começo do trabalho industrial naquela zona. Em 20/21 fizemos uma manifestação em Alverca para vir saudar Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Como passou da aviação para a Sodapóvoa?A certa altura fui despedido. Eu e mais outro. Houve um despedimento de duzentos e tal operários na aviação numa acção de massas que fizemos. Eles tinham necessidades desses trabalhadores nessa especialização. Aos outros voltaram a chamá-los. Só nós dois não fomos chamados. Porquê?Nós é que fomos os agitadores daquela acção inicial. Foi uma acção massiva. Eram acções anti-patronais. Neste caso de Estado.O que pretendiam?Melhores salários. Estavam a querer morder os nossos interesses. E nós conseguimos fazer uma acção de grande volume apanhando uma quantidade de operários. A zona era do proletariado agrícola, mas começou a industrializar-se e a introduzir grandes lotes. A Sodapóvoa era uma grande fábrica. Foi aqui que conheci pela primeira e única vez o Salazar e o Carmona. Exigiram que os trabalhadores se juntassem em frente da porta onde o Salazar e o Carmona iam entrar. Só um operário é que gritou ‘Viva Carmona, Viva Salazar’. Esse trabalhador teve até um acidente de trabalho com gás dias depois e nós é que o salvámos. Também privou com Soeiro Pereira Gomes.Fui eu quem trouxe Soeiro Pereira Gomes para o partido comunista português. Veio de África e foi trabalhar para a Cimentejo, em Alhandra. Começou a fazer trabalho intelectual de alto valor em Alhandra. A certa altura o Redol começou a ter dificuldades em dedicar-se à literatura por causa do trabalho no partido. Então nós decidimos libertar o Redol para que se pudesse dedicar à literatura. Assim foi. Quem o levou a si para o partido?Foi um camarada que foi do Barreiro trabalhar para a aviação. Lembro-me que a certa altura fui convidado para membro da Juventude Comunista, já era então membro do regional no Baixo Ribatejo, mas ninguém sabia disto. Entrei também. Era simultaneamente membro da juventude e membro do regional. Estávamos na clandestinidade. Participou nas reinvindicações da Sodapóvoa pelos subsídios?Sim senhora. Um dia estava a tornear um grande veio redondo e no armário onde tinha as ferramentas tinha um livro de Marx. Enquanto o torno ia torneando o veio eu ia lendo. A certa altura vem uma mão e tira-me o livro. Agarra: ‘Então não ser preciso mais nada?’. Era o director belga. Saltei para o meio da oficina: ‘É para me despedir? Olhem este quer despedir-me por causa de um livro’, gritei. Ficou à rasca. Chamou o encarregado e disse-lhe para me castigar com alguns dias sem trabalho. Mas não fui despedido (risos).Quase duas décadas de clandestinidadeViveu quantos anos na clandestinidade?Dezassete anos. Durante esse tempo era responsável pela imprensa do partido. Tive a responsabilidade de todo o Alentejo e de todo o Algarve. De todo o distrito de Lisboa e Santarém. Quando passei à clandestinidade em 1941 os camaradas deram-me Alentejo, Algarve, Covilhã e Gouveia. Fazia as ligações de bicicleta. Era já do comité central e ia fazer o controlo político dessas zonas. Quando tive que deixar o Alentejo porque foi assassinado o Germano Vidigal e a malta achou que eu devia sair dali. Já estavam quase em cima de mim. Fui 17 anos director do Avante. Era a profissão que tinha no partido. Teve alguma situação mais complicada?Várias. Olhe, quando foi a morte do camarada Alex. Foi morto perto de Loures. Morava do lado de lá do Tejo. Íamos reunir a minha casa em À das Lebres para discutir algumas medidas. Eu tinha o contacto de João. O Campino, que já tinha sido preso, tinha decidido escrever Joana. A Pide lá foi à procura da Joana. Foi isso que me salvou. Alex foi morto frente dos trabalhadores. Deram-lhe um tiro e atiram-lhe a bicicleta para cima.
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