A cunha de Cunhal e a Mercedes
Na semana passada, mencionei algumas "regalias" que os presos conseguem obter nas cadeias portuguesas: prostitutas, vinho, drogas e telemóveis.Entre 1936 e 1954, em Cabo Verde, funcionou o tenebroso campo de concentração do Tarrafal. Para aí eram enviados presos políticos, cujas regalias especiais consistiam em tentar dispor de água e alguma fraca alimentação, ao mesmo tempo que procuravam recuperar da exaustão causada pelos trabalhos forçados. Muitos morreram, vitimados por biliosa ou tuberculose.Uma das figuras mais fascinantes da oposição era Álvaro Cunhal, o genial advogado comunista.Conheci-o pessoalmente em 1986. Conversei com ele longamente. Disse-me o então secretário-geral do Partido Comunista:- Portugal acaba de aderir à Comunidade Europeia. Com certeza, o país vai evoluir. Mas estaremos sempre na cauda da Europa. Trata-se do paradoxo da lebre e da tartaruga. Esta parte primeiro. Quando a lebre alcança o ponto em que a tartaruga se encontrava, já o lento animal avançou um pouco e continua em primeiro lugar. Duas décadas passadas, verifica-se que, infelizmente, o Dr. Cunhal tinha razão.Apesar de ter estado preso diversas vezes e de ter sido submetido a tratamentos cruéis, o líder comunista nunca esteve no Tarrafal. Qual a explicação?A literatura oficial do PCP omite este importante aspecto. No seu recente livro de memórias, Edmundo Pedro avança uma tese. Álvaro Cunhal foi preso pela primeira vez, aos 22 anos de idade. Tinha regressado de Moscovo, onde participara no congresso da Juventude Comunista.A polícia política sabia perfeitamente que Álvaro Cunhal presidia à Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas. Prenderam-no e ele foi brutalmente torturado, ficando privado da liberdade durante onze meses.Quase todos os dirigentes da Juventude Comunista - também detidos na mesma ocasião -- foram para o Tarrafal, onde permaneceram durante anos.Na sua admirável obra, Edmundo Pedro diz que alguém intercedeu junto do Governo a favor de Cunhal, sem que o próprio recluso tivesse tido conhecimento. Por isso, beneficiou deste tratamento de excepção. É verdade. Mas não é novidade.Apenas confirma o que Pacheco Pereira já havia relatado na notável biografia do líder comunista.A mãe de Álvaro Cunhal era profundamente anti-comunista. Não lhe agradava nada a vida que o filho estava a levar. Mal Álvaro foi preso nesse primeiro momento, a sua progenitora, Mercedes, dirigiu-se ao Ministro Santos Costa, para que este intercedesse junto do capitão Lourenço, director da polícia política. No entanto, Cunhal não foi imediatamente libertado, como ela pretendia. Pacheco Pereira salienta o clima à data. "Portugal é um país de cunhas e Mercedes usa os seus conhecimentos e os dos seus conterrâneos".. Por isso, "quando Cunhal é preso as primeiras vezes, Mercedes toma a iniciativa natural de tentar usar os seus conhecimentos para o libertar".Anos mais tarde, ela cansa-se e diz ao filho:- Tu escolhes a vida que quiseres. Mas se voltas a ser preso, não contas mais comigo.Ora é precisamente aquando da primeira prisão de Cunhal que a polícia política dá, por escrito, o seu parecer: cumprida a pena, o recluso deveria ser transferido para o Tarrafal. Todavia, o Ministério do Interior manda restituir Álvaro Cunhal à liberdade.Hoje, sabe-se perfeitamente por que razão tal sucedeu.Todavia, é necessário sublinhar o seguinte: Cunhal não tinha conhecimento das movimentações que eram feitas enquanto ele sofria os horrores do cárcere.(hjfraguas@hotmail.com)
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