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“Os comunistas não têm que ser miserabilistas”

“Os comunistas não têm que ser miserabilistas”

Como é que veio parar a Samora Correia?Construí esta minha casa em 1972 num terreno doado pela minha avó e com a ajuda de amigos duma instituição bancária que me emprestaram dinheiro. Vivia em Lisboa, mas tinha aqui a minha casa de fim-de-semana que acabou por ser a minha casa principal, apesar de continuar a ter casa em Lisboa.Apesar de solteira e comunista, construiu uma casa imponente. A casa parece grande, mas não é. A incultura em que o Estado Novo, a que chamo ditadura fascista, pôs o povo português, criou a ideia de que os comunistas comiam criancinhas, só tinham um par de sapatos e viviam na miséria. Eu não fui educada assim. Os meus pais não eram comunistas, mas deram-me uma educação que me permitiu ver o mundo com outros olhos. Quem marcou o seu pensamento político? A Revolução de Espanha foi determinante para construir as minhas ideias. Nós íamos para a praia da Nazaré e lá conhecemos várias famílias espanholas que vinham para ali. Fiz amizade com dois jovens militares (tenentes) de Espanha que meses depois foram para a guerra. Comecei a seguir a guerra pela rádio e aprendi castelhano com os miúdos espanhóis. Guardo aqui um livro de receitas do meu pai onde escrevi a informação da Rádio Nacional de Espanha sobre a Guerra em 1939. Está aqui o número de aviões abatidos, o número de mortos e feridos. É um livro de receitas originais onde não falta o Bolo de Samora. Nesta altura em que escrevia estas informações era muito jovem…Comecei a ler aos cinco anos. Um dia o meu pai viu-me a ler o jornal Diário de Notícias e ficou com os olhos em bico. Chamou a minha mãe para lhe dar a novidade. Aprendeu a ler sozinha?Não. Foi com o meu irmão que era mais velho e já andava na escola. Tive a ajuda de umas senhoras de Santarém que cuidavam de crianças e lhes ensinavam a ler e a contar. Mas acho que isto tem a ver com os genes porque sempre fui muito curiosa e por isso fiz uma vida na investigação.Gostava de estudar?Só não gostava de fazer cópias. Achava que era um desperdício estar a escrever o que já estava escrito. Apesar de nunca ter dado um erro. Nunca levei uma varada ou uma reguada dos professores e guardo boas recordações de todos.Foi uma boa aluna?Entrei directamente para a segunda classe e quando tinha nove anos não pude fazer exame da quarta classe porque ainda não tinha idade. Para se fazer antes do tempo tinha de pagar 650 escudos. O meu pai ganhava 850 escudos, não podia pagar. Mas nunca fui a melhor aluna. Isso não impediu que fosse um dos três doutoramentos dos alunos do Liceu Nacional Sá da Bandeira em Santarém (nunca o vou chamar de outra maneira) e me considere uma pessoa intelectualmente realizada.Pai lutou pela chegada daelectricidade a SantarémPercebe-se que tinha uma relação muito especial com o seu pai. Chamava-se Francisco dos Santos Serra Frazão e foi vice-presidente da Câmara de Santarém entre 1923 e 1927. Foi com ele que Santarém conquistou a electricidade. Era uma figura respeitada na cidade, contemporâneo de Bernardo Santareno e Francisco Viegas, o pai do Mário Viegas. O meu pai era um homem culto, bem formado e com uma visão muito adiantada para a época.O que sente quando regressa a Santarém?Sinto saudade de outros tempos. Recordo-me de, já crescida, ir ver um jogo dos Leões de Santarém com a Fernanda Duarte e já só conhecia os velhos. Por outro lado não gosto de ver aquele urbanismo sem regras e o abuso da construção em altura. Fico triste com o abandono dos monumentos, mas é um mal nacional. Apesar disso julgo que também se têm feito coisas positivas em Santarém.Porque é que nunca foi autarca em Santarém?Nunca tive amigos que me convidassem como tive aqui em Benavente. Mas gostaria muito de ter podido ser autarca no concelho de Santarém e ter contribuído para uma cidade mais interessante. Tenho um camarada do PCP que não achou graça nenhuma ao facto de eu nunca ter integrado as listas em Santarém.Quando fala da ditadura emociona-se.O meu pai esteve duas vezes preso. Esteve 15 dias sem dormir em pé na tortura do sono. A minha mãe quando o foi buscar ao Aljube caiu para o chão desmaiada. Isto era do conhecimento do Salazar. Era fascismo do mais puro. Mais puro que o italiano. A maioria das pessoas fala por ouvir dizer, mas eu vivi, assisti e sofri a ver caras esmigalhadas pelos homens da PEVIDE, como eu lhes chamava. (PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) Temos uma democracia saudável?Não. Temos uma democracia doente. Como diz o Sérgio Godinho: a liberdade é trabalho, educação, saúde, habitação e ainda falta isto tudo a muita gente. Às vezes tenho alguma relutância em chamar democracia porque conheço aquilo a que chamam democracia na América. Tem muitos amigos?Tenho os que gosto de ter. Uma das minhas melhores amigas em Samora, há 60 anos, é a Carmina Cigana. Uma mulher de trabalho que ainda hoje me beija e abraça com amizade. Fui educada para respeitar toda a gente e lidar com todas as classes sociais.O seu pai foi seminarista, mas a senhora não é católica. Nunca entrou numa igreja?Eu adoro igrejas como monumentos, mas nunca participei num culto. Sou uma ateia assumida. Um dos livros que marcou a minha juventude foi a história das religiões do Ernest Renan. Não acredito em nenhuma religião nem em seres supremos. É que não acredito mesmo.A vida termina com a morte?A vida termina como a de qualquer ser vivo. Até uma árvore morre, algumas morrem de pé. Por isso é que eu quero ser cremada.E as cinzas…Serão lançadas ao Tejo na ponte velha (D. Luís), que a nova não me diz nada.Como é que reage com a expressão graças a Deus?Olhe, eu devo ter feito figuras desagradáveis quando estive doente. As pessoas viam-me na rua e diziam: “está melhorzinha graças a Deus”. Eu dizia: graças ao médico que me operou. Saía-me porque sou muito impulsiva.A doença aproximou-a de várias pessoas?Tive reacções que não esperava. Muitas pessoas que se preocupavam com o meu estado de saúde, mesmo algumas que mal me falavam.
“Os comunistas não têm que ser miserabilistas”

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