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O herói das águas abertas que salvou vidas e lutou contra a fome

O herói das águas abertas que salvou vidas e lutou contra a fome

Baptista Pereira foi o único português a vencer a travessia do Canal da Mancha

O nadador de Alhandra, Baptista Pereira, foi o único português a vencer a travessia do Canal da Mancha. O “Gineto” de “Esteiros” salvou dezenas de pessoas do rio e do mar e resgatou algumas à fome - o fantasma que o atormentou na infância.

Uma mulher de vestes negras, olhos cor do mar e cabelo grisalho caminha até ao lugar onde se ergue o busto do nadador Joaquim Baptista Pereira, nas traseiras das piscinas, em Alhandra. O memorial ao único português que venceu a travessia do Canal da Mancha (entre Inglaterra e França), em 1954, está defronte para o rio onde aprendeu a nadar um dos tais homens que nunca foram meninos. A imagem que assinala meio século sobre a travessia da Mancha foi erigida em 2005 pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira que também realiza uma prova com o nome do nadador. Este ano a travessia entre Vila Franca e Alhandra está marcada para 8 de Setembro. “É a primeira vez que aqui venho”, diz Maria Antónia Sousa de Melo Pereira e Castro. Tem 82 anos. O busto deixa adivinhar a pujança física do nadador por quem a tecedeira se apaixonou aos 14 anos. E de quem tem três filhos. Foram os descendentes que deram forças ao herói para que a travessia se cumprisse nos 34 quilómetros de mar entre França e Inglaterra. E para que os recordes do mundo fossem batidos. Nas horas mais difíceis o “Gineto”, imortalizado por Soeiro Pereira Gomes no romance “Esteiros”, lembrava-se da prole. “Em Gibraltar uma vez estava quase a desistir. As águas do estreito eram frias, frias, e eu estava sozinho no meio daquelas águas todas. Ouvia o barulho dos golfinhos, via-os na noite aos saltos, através dos óculos, mas as águas estavam muito frias e eu pensei: «Não aguento isto; vou abandonar». Mas não abandonei, sabe porquê? A páginas tantas, enchi-me de raiva e disse cá comigo: «Vá Gineto, tá tudo à espera. Esta braçada vai pela Cilinha, esta braçada vai pelo Tito, esta braçada vai pela Natércia». Acelerei o ritmo, desapareceu o frio do corpo. E bati o recorde do Mundo da Travessia do estreito de Gibraltar”. O testemunho foi registado por Baptista Bastos e está no livro “As Palavras dos Outros”. Não é por acaso que é a primeira entrevista da colectânea de reportagens. O jornalista que quis conhecer Gineto ficou estarrecido com a grandeza de um homem simples. “O Joaquim Baptista Pereira era um campeão! E um campeão invulgar. Encontro um homem de uma singeleza extraordinária, mas de fortes convicções. É o português típico… Se eu quisesse fazer uma comparação com o Baptista Pereira comparava-o aos heróis escorbúticos dos descobrimentos. São os grandes heróis dos descobrimentos. Mas nós só ligamos importância ao Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. E aqueles que lá iam? Sem condições nenhumas?”, interroga-se o jornalista que à distância de décadas ainda sente a pele eriçada ao evocar o nadador. Baptista Bastos era um rapaz novo quando se fez a travessia. Seguiu tudo aquilo apaixonadamente. “Era toda a imprensa de todo o mundo. Aparece um camponês. Um tipo atarracado. Com a determinação de que vai fazer qualquer coisa que ele próprio não sabe bem o que é. Sabe é que tem que atravessar a Mancha”, descreve. Nesse dia longínquo de 21 de Agosto de 1954 Maria Antónia foi como habitualmente trabalhar na fábrica de têxteis em Alhandra. E atormentou-se quando a filha mais velha entrou pela unidade adentro em alvoroço. “Mãe, o pai ganhou a Mancha”. Maria Antónia não quis acreditar. “«Oh rapariga, tu não estás bem, não me deixas trabalhar». Até ralhei com ela porque não me deixava sossegada. «Não venhas cá que a mãe não pode andar para trás e para a frente». Foi quando chegou o povo. Os jogadores do Benfica. Foram esses que fizeram com que saísse da fábrica. Depois fui acompanhada por aquela gente. Fui ao Largo da Praça, ao Alhandra, foi uma festa muito grande”. Maria Antónia sabia-o em provas, mas pouco mais. O trabalho e os três filhos davam-lhe que fazer. A travessia mudou a vida da família. A mãe deixou a fábrica e ficou em casa. Baptista Pereira orgulha-se de ter criado os filhos com os confortos que não teve em criança. “Os meus filhos foram meninos”, confidenciou a Baptista Bastos. “Não havia pai como ele na terra”, atesta Maria Antónia. As privações que passou enquanto criança fizeram-no olhar a vida com outros olhos. Não deixava ninguém mal à sua volta. “Olhe, a gente não sabia que ele dava. Ele não dizia a ninguém. Eu às vezes é que via pelo dinheiro… Ia à taberna e dizia: «Dá sopa, isto e aquilo que eu pago tudo». Era muito amigo de ajudar. Mesmo pessoas de fora que via que precisavam. Tinha muito medo da fome…”.
O herói das águas abertas que salvou vidas e lutou contra a fome

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