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Um homem simples que queria ser tratado com dignidade

Fala pausadamente, em voz baixa. Por vezes faz um esforço para se lembrar de algumas palavras em português. Joaquim da Silva Fernandes, nascido em 5 de Janeiro de 1934 na Gouxaria, Alcanena. Português e ribatejano. Alcunha de família, Pinote. Emigrante no Alasca por não querer que o fruto do seu trabalho lhe fosse pago como se lhe dessem uma esmola. Por acreditar no valor que tinha e por querer ser tratado com dignidade. “Decidi emigrar em Agosto de 1959. Na altura tinha vindo da tropa e estava a tomar conta da fábrica de curtumes do meu pai. Esta onde estamos agora. O sector estava em crise. O país estava em crise. Carreguei uma furgoneta de sola e fui tentar vendê-la. Corri todos os armazéns de Lisboa e nada. No dia seguinte rumei ao norte. Para a zona da indústria de calçado. Coimbra, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira, Porto, Guimarães, Felgueiras. Sem sucesso. Nunca mais me esquece que voltei o carro para baixo, à saída de Felgueiras, parei num sítio à sombra e pus-me a pensar. ‘Isto para mim não serve. Parece que ando aqui a pedir esmola, de porta em porta, com um carro carregado de sola para vender. Ainda estou muito novo para pedir esmola e posso bem trabalhar. Vou arrumar a minha vida e vou embora para o estrangeiro’”.Cruza os braços e avisa que a história demora a contar. As duas tatuagens feitas há 46 anos estão cobertas de cabelos. A pele morena não ajuda a perceber os desenhos. Uma bailarina semi-nua e as iniciais do seu nome. Usa dois enormes anéis de ouro na mão esquerda. No mindinho e no anelar. Ostenta um grosso cordão de ouro ao pescoço com um penduricalho de respeitável tamanho. Ali perto está um enorme carro americano. Um Continental. “O meu pai chamava-se António Joaquim Fernandes da Silva, era daqui. A minha mãe era de Casais Romeiros. Maria Ascensão da Silva. Éramos quatro irmãos. Dois rapazes e duas raparigas. Uma delas era mais velha. Eu era o segundo filho.” Joaquim fez a escola primária e não estudou mais. Começou a trabalhar cedo, para a família. A guardar os rebanhos do pai e depois na fábrica. Quando chegou a altura fez o serviço militar em Abrantes. Regressado tomou conta da fábrica. Depois, já aqui foi dito, decidiu partir. “Para África não tinha vontade de ir. Em África o patrão era o mesmo. Aquilo era Portugal, na altura. E sempre ouvia dizer que África era o sítio para onde iam todos os vigaristas, trafulhas, caloteiros. Todos os que já não se safavam por aqui. Quando pensava partir era para a Venezuela, Estados Unidos da América ou Canadá”.Sonhar era fácil, mas sair era muito complicado. O processo arrastou-se por um ano. Conseguiu um passaporte para alguns países da Europa. Para a América ou Canadá era impossível. Chegou a ir a Paris, ao consulado português, na esperança que lá fosse mais fácil. Não foi. Depois de muitas voltas, pedidos e rios de dinheiro gasto conseguiu passaporte para o Canadá. Mas faltavam os vistos. Só esta parte da história dava um capítulo de um livro. “Dava mesmo um livro”, diz ele. A conselho de um amigo foi numa excursão ao México. Ali obteve visto de entrada no Canadá. Visto de turista, está claro. Era o que ele queria. Estávamos em 1960 e Joaquim passou a Jack Fernandes, operário na construção de uma linha de caminho-de-ferro. Trabalhador de pá e picareta. Em vez dos três meses da praxe o turista ficou oito anos. O que o encantou não foi a paisagem, que era gélida, mas o que ganhava. “Fui em busca de novos horizontes. Aqui trabalhava-se muito e não se via nada. Mas custou-me porque em Portugal nunca tinha trabalhado uma hora por conta de ninguém. Lá fazia 10 horas por dia, 7 dias por semana. Trabalho duro. Até tinha os chatos empenados, como se dizia entre o pessoal. Mas compensava. Ganhava bem e as despesas eram poucas. O meu lema era, ganhar o mais possível honestamente e gastar o menos possível, modestamente.”Do caminho-de-ferro passou para a construção de um porto. A seguir para a construção de barragens. Deixou a picareta e tornou-se carpinteiro. Também trabalhou como soldador. Versatilidade nunca lhe faltou. Nem força. Nem vontade. O irmão mais novo decidiu ir ter com ele. Foi completamente ilegal. Acabou por lhe complicar a vida. Apanhou tuberculose e os dois foram intimados a abandonar o país. Joaquim Fernandes saiu, para não ser expulso. O irmão decidiu ficar por sua conta e risco.Em Portugal foi mais uma luta de meses para conseguir regressar. Problemas, entraves, burocracias. Mas a vontade de Joaquim Fernandes era mais forte que tudo. Regressou legalmente e mandou chamar a esposa já que entretanto tinha casado. Foi no Canadá que lhe nasceram os filhos. Mas o chamamento do “sonho americano” soou mais alto e foi no Alasca que acabou por cumprir o seu destino. Ao fim de 36 anos é empresário da construção civil, diz que teve uma vida muito boa e agora prepara-se para regressar a Portugal onde quer morrer.

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