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O homem que vende bacalhau para o Vaticano

Rui Silva, 41 anos, assumiu a gerência da mercearia há dez para ajudar o pai

A maioria dos clientes trabalha ou vive nas redondezas. Rui conhece-os quase todos, sabe-lhes os nomes e as vidas. Tem sempre alguns minutos de conversa para cada comprador.

Rui Manuel da Silva trabalha há dez anos com o pai na pequena mercearia “Coqueiros”, situada no centro histórico de Tomar há mais de três décadas. O nome da casa foi herdado dos tempos de África, de Luanda, onde existia o Estádio dos Coqueiros. Mas foi só a designação que viajou para a metrópole, já que a especialidade da mercearia é bem portuguesa – o bacalhau. “Aqui vendemos só produto genuíno. Não temos peixe gato, pichelim ou asa branca. Só vendemos o melhor. Vem aqui gente de toda a cidade para comprar o nosso bacalhau no Natal. E até de Lisboa!”, explica Rui Silva. Mas o orgulho vai mais longe. “Nós até vendemos para o Vaticano. Há uma senhora que compra sempre para mandar para o filho que está lá. Até compraram para oferecer ao antigo Papa, mas acho que nunca lá chegou”. Rui Silva tem 41 anos de idade. Antes de assumir a gerência da mercearia com o pai, trabalhava no matadouro local. Embora assuma que gosta de animais e que agora teria dificuldades em matá-los, confessa que no passado já não ligava – “estava automatizado”. A função no matadouro durou quase uma dúzia de anos e seria para continuar, não fosse a saúde débil do pai. Rui decidiu abandonar o antigo trabalho e abraçar a nova profissão que já conhecia desde novo, dos tempos de escola em que passava as horas vagas com os pais no pequeno espaço, amontoado de prateleiras, caixotes e com uma vitrina para os frescos. Na mercearia é possível encontrar de quase tudo. Do lado de fora estão expostos os legumes e as frutas, acompanhados pelas botijas de gás. Lá dentro, encontram-se centenas de frascos e pacotes dos mais variados produtos. A maioria dos clientes trabalha ou vive nas redondezas. Rui conhece-os a quase todos, sabe-lhes os nomes e as vidas. Tem sempre alguns minutos de conversa para cada comprador. “Gosto muito de lidar com as pessoas”. No entanto, os tempos em que se fiavam as compras já passaram. “Hoje já não se pode fiar como antigamente, porque há pessoas que não pagam. A maior parte fica a dever e desaparece e quando os vemos na rua, até temos vergonha de pedir o que é nosso”, confessa. “Mas essas pessoas levam melhor a vida que nós. Levam-na a brincar”. As experiências foram tantas, que Rui e o pai decidiram que só voltavam a fiar aos clientes de confiança, que já são poucos.Os estudos ficaram a meio. Terminou apenas o 9º ano porque “era malandro”. Nessa altura sonhava ser “artista da bola”. Perdia horas a jogar o desporto favorito. Mas ficou-se apenas pelo desejo. Como as notas na escola eram más, os pais castigaram-no e tiraram-lhe o futebol. Actualmente, sofre apenas com o seu Benfica. Depois, “perdeu tempo” no ano e meio que cumpriu o serviço militar em Santa Margarida. “A única coisa boa que trouxe foi a carta de pesados”. Nunca se viu com futuro na tropa e por isso saiu e foi trabalhar para a Platex. Passaram-se os anos e voltou à pequena mercearia onde pensa acabar os dias de trabalho. Dias que são longos e não parecem ser fáceis. “Levanto-me todos os dias às cinco e meia da manhã”. Uma hora depois já está à porta da mercearia, descarrega os produtos e recebe o pão – “Não o podemos deixar lá fora senão o pessoal da noite tem um pequeno-almoço antecipado”, ri. Às 07h00, as portas já estão abertas para receber os primeiros clientes. O dia prossegue sem pausa para o almoço (pai e filho revezam-se na caixa registadora) e termina por volta das 22h00, depois de uma ida ao mercado abastecedor. A folga só existe ao sábado à tarde e ao domingo e férias já não são vividas há oito anos. “Um dia, quando eu morrer, tenho férias”. O negócio familiar poderá ter seguidores nos três filhos, de 18, 17 e 6 anos. Mas Rui sabe que para já os planos são outros. Os filhos estão lançados em diferentes ambições. O pai diz que os recebe de braços abertos se algum dia quiserem trabalhar na pequena mercearia, mas “se arranjarem uma coisa que dê para ganhar mais e trabalhar menos é melhor”. No entanto, o futuro da mercearia “Coqueiros” está garantido por mais alguns anos. “Adoro isto”, diz Rui Silva com ar satisfeito.

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