Há um terceiro braço em Luís Petisca que é o braço da guitarra
Um guitarrista de fado que sabe ler música e que meteu o instrumento no Flamenco
Nasceu na Chamusca há quarenta anos. Chama-se Luís Petisca e é um dos melhores tocadores de guitarra portuguesa. É também dos poucos que sabe ler uma pauta. A mãe, Maria Emília Vacas sempre esteve ligada ao teatro. O pai, José João Petisca, é artista de outras artes mas a família dele também esteve ligada ao teatro e à música. Um caso em que a genética se impôs.
Tinha o gene artístico da família. Como foi a sua juventude?Estava na escola com a cabeça na música. Tive algumas pegas com o meu pai. Em Portugal muita gente se queixa do mesmo. O José Cid até tem uma canção sobre isso. Eu nasci para a música. Ainda hoje a música não é considerada profissão. Ou estudas para ser alguém ou não te safas. Temos que ser doutores à força toda. Quem ganhou a guerra?Ganhamos os dois. O discurso do meu pai funcionou. Eu sempre tive os pés assentes na terra. Embora me dedicasse o mais possível à música, agarrei-me aos livros. Um pé dentro e outro fora. Licenciei-me em Ciências da Educação, variante de Educação Musical. Sou professor de música do ensino básico. Paralelamente sou professor de guitarra portuguesa numa escola particular de música em Santarém, que é O Piano, e no Conservatório, também em Santarém. Se não investirmos no instrumento ele desaparece.Como começou na música?Estreei-me a tocar em 1982/83 com o grupo Gente. Um grupo de Música Popular Portuguesa. Faziam parte o José Pinhal, o Pedro Pinhal, o João Chora. Quando comecei tinha 14 anos, salvo erro. Este ano faço 40. Éramos uma espécie de banda de “covers” da música popular. Tocávamos temas de outros grupos. A Brigada Vítor Jara estava no auge de popularidade. Depois começamos a procurar o nosso próprio reportório. Fandangos, fados, modinhas. O concelho da Chamusca é rico em termos de reportório por ser uma zona de trabalho. Vinha para ali muita gente de outros lados trabalhar e trazia a sua cultura. Havia ali muita cantiga que vinha de muito sítio. Fizemos um trabalho de recolha muito engraçado.Como chegou a palcos maiores? Quando fui estudar para Torres Novas, no décimo ano, conheci o Pedro Barroso. Ele tinha um clube de música lá na escola e eu inscrevi-me. Na ficha havia uma pergunta sobre os instrumentos música que cada um tocava. Eu escrevi Braguesa, Viola Beirã, Cavaquinho, etc…tudo o que me tinha passado pelas mãos lá no grupo de música popular da Chamusca. Ele achou curioso e falou comigo. Algum tempo depois convidou-me para tocar com ele. Foi um espectáculo na Lousã. A minha estreia profissional. Os músicos dele eram super-profissionais. Já tinham acompanhado José Afonso, Fausto, etc. Os meus horizontes mudaram completamente. Foi uma coisa incrível.Fez mais espectáculos com ele? O que tocava? Tocava cavaquinho, flauta, bombo, viola. O Pedro Barroso sempre trabalhou com músicos polivalentes para ter aquela sonoridade. Eu tocava tudo o que era preciso. Foi fantástico. Andei dois anos e tal com ele, até que o meu pai me pôs nos eixos dos estudos outra vez. O seu padrinho musical foi o Pedro Barroso?Foi, foi. Sem dúvida. É um excelente amigo e um compositor fantástico. Estou a produzir um disco dele. Já o anterior também fui eu que produzi. Tem alguns temas meus. Já falou de violas, braguesas, cavaquinhos. Como é que aparece a guitarra portuguesa na sua vida? Pedro Barroso foi o meu padrinho de grandes palcos mas eu tive outros padrinhos ao nível da música a quem estou eternamente grato. Ao meu primeiro professor de música, José Augusto Lapa, ao José Pinhal, por exemplo, que é um dinamizador cultural por excelência. Quando eu era miúdo ele movimentava cerca de uma centena de jovens em actividades como teatro, música. Eu e outros não enveredámos por caminhos menos bons porque ele e outros Zés Pinhais que havia na Chamusca nos acompanharam. Com eles fomos crescendo e aprendendo coisas que não se aprendem na escola. Aprendeu a tocar guitarra portuguesa com ele? Não. Mas foi a partir de uma história curiosa que tudo começou. Havia uma noite de fados para angariação de fundos para o lar da terceira idade e o guitarrista faltou. O Pinhal desafiou-me a substituí-lo. Eu pensei que, se tocava os outros instrumentos e conhecia os fados, era capaz. Fui e não consegui tocar. Foi o único instrumento que me deu a volta à cabeça. Como transformou esse seu fracasso num sucesso?Andei. Só ao fim de dez anos a tocar guitarra é que comecei a sentir que o instrumento já era o meu instrumento. Era um estudo diário. A guitarra toca-se de ouvido?Há poucos guitarristas a ler música. Somos três ou quatro em Portugal. Mas aprendeu de ouvido.Sim. Aprendi a tocar o instrumento e só mais tarde é que aprendi música. E escreve-se música para guitarra portuguesa?Escreve-se. Usa-se uma notação especial que nós fomos desenvolvendo. Eu, o Paulo Soares, o Pedro Caldeira Cabral.Qual é a vantagem de tocar guitarra portuguesa com uma pauta à frente?Se é preciso tocar com uma orquestra, por exemplo, com um arranjo feito por um maestro, lá vou eu. Posso não ser o melhor guitarrista, mas como sei ler música…Quando ensina o instrumento, ensina a tocar por uma pauta? Sim. Os meus alunos tocam com pauta.Uma pauta limita qualquer tocador de guitarra portuguesa.A pauta deve ser uma ajuda. É como estarmos a ler um poema e termos a cábula ao lado. É para sabermos interpretar não haver brancas. Estou a trabalhar com um artista que tem um espectáculo com vinte e tal músicas. Toco com ele hoje e só volto a tocar as mesmas músicas daqui a seis meses. É natural que não me lembre de algumas músicas mas se tiver ali a pauta vejo as primeiras notas e entro facilmente. As pautas são excelentes auxiliares de memória.Não me lembro de o ver em palco com uma pauta à frente.No último disco da Teresa Tapadas, Meu Grão de Paraíso, os arranjos foram feitos pelo Marinho Freitas, que é um maestro reconhecido. Aí não havia hipótese de tocar de ouvido. Tinha oboé, violoncelo, uma série de instrumentos. Os primeiros dez espectáculos que fiz com ela tive que tocar exactamente o que lá estava escrito. Muito raramente punha uma nota ou outra. Era como se fosse música erudita. Estava totalmente espartilhado.Completamente. Não é daquilo que eu gosto. Prefiro as músicas onde tenho espaço para criar. Para me recrear. Para inventar de cada vez que toco. Alguma vez pensou gravar um disco a solo? Isso é uma coisa que me vai atormentando de tempos a tempos. Eu tenho reportório. Faço muita música. Desde que comecei a tocar que faço música. Já fiz alguns concertos a solo. Pode ser que um dia me decida a gravar.Gosta de estar num palco a solo?Não é o que mais gosto de fazer. Gosto de estar a acompanhar. Gosto mais de trabalhar para o conjunto. A acompanhar cantores ou a acompanhar outros músicos?Gosto muito da voz e acho que a guitarra portuguesa serve muito bem a voz. No fado, gosta mais de vozes masculinas ou femininas?Masculinas.Deve andar desgostoso porque agora há mais mulheres que homens a cantar fado. E já falou de fadistas com quem trabalha. Elas não vão gostar de ler isto.Eu trabalho com elas e gosto delas. Das suas vozes. Em termos de timbre gosto mais de vozes graves. Mas hoje em dia é preciso vender…E a mulher vende mais? É por causa da beleza?Sim, acho que a estratégia passa por aí. Além disso é preciso não esquecer que um dos grandes ícones do fado, talvez o maior, é Amália Rodrigues. Os produtores vão buscar fadistas para as promover como novas Amálias. É a lógica do mercado.A guitarra portuguesa é o último reduto dos homens? Mulher não entra?Pode parecer machista o que eu vou dizer, mas de todos os instrumentos de corda dedilhada ou percutida, são instrumentos, por excelência, de homem. Por causa da força que exigem. Tem alunas de guitarra portuguesa?Não. Só rapazes. O instrumento ainda tem, essa carga. Ainda está associado a homens. Também sonha reinventar o instrumento?Uma coisa que já fiz, que penso ser inédito, é aplicar a guitarra portuguesa no Flamenco. É algo que faço com regularidade. Trabalho com alguns músicos de Espanha e uso uma técnica que ainda não vi mais ninguém utilizar. Não descobri a pólvora. Limitei-me a pegar na técnica usada na guitarra de Flamenco e adaptá-la. Soa tipo alaúde.Há algum fado do Ribatejo?Há sim senhor.Por causa dos temas? Os cavalos, os touros, as touradas?Não é por isso. Tem a ver com a atitude que se tem a cantar e a tocar. E muito por culpa de um músico de Santarém que é o Carlos Velez. Ele abordou o fado de uma maneira diferente quando começou a tocar há trinta e tal anos. Entrou no fado a tocar muito mais vivo. Com muito mais alegria. É um estilo que tem mais sol. Mais galope.E quem toca o fado do Ribatejo?Os músicos e cantores daqui já têm isso entranhado. Faz parte do seu ADN. Da sua cultura. Também se arrepia quando ouve uma guitarra portuguesa? Também. Quem é que lhe provoca essa sensação?Do que está gravado é o Carlos Paredes. Em quantos discos está o som das suas guitarras?Há uns cinquenta discos em que eu já participei. E trabalho como produtor. Escreve poesia? Letras para fados?Não. Nada. Escrevi alguma literatura infantil. Tenho um editado pela Porto Editora.Escreveu-o para quem?Foi um trabalho que tinha que fazer numa das cadeiras da universidade, literatura para infância. Nunca pensei que aquilo merecesse ser publicado. A guitarra portuguesa é eficaz para chegar ao coração de uma mulher?Se for perguntar à minha mulher ela vai já dizer que não porque eu ponho sempre a guitarra primeiro que ela.
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