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“Cada vez há mais pobreza envergonhada”

Padre José da Graça é responsável pela única delegação do Banco Alimentar Contra a Fome na região

Consagrou a sua vida aos outros e é assim que se sente bem. Responsável pelo Banco Alimentar Contra a Fome de Abrantes e por uma comunidade terapêutica para toxicodependentes, o padre José da Graça é uma figura conhecida e respeitada na cidade onde reside há muitos anos. Já foi convidado para ser candidato à câmara e recusou. Não acredita nos políticos, embora reconheça que há excepções. Voz desassombrada, defende o celibato dos padres e diz que a caridade é a vertente mal amada da Igreja.

É responsável pela única representação do Banco Alimentar Contra a Fome na região. Esse tipo de organismo faz cada vez mais sentido na nossa sociedade?Aqui vem bater todos os dias gente a pedir. Há uns tempos se eu dissesse que lhes dava alimentos, eles respondiam que nem pensar. Queriam era dinheiro. Hoje ninguém pede dinheiro para comer. Porque cada vez há mais pobreza envergonhada. Esse é um fenómeno novo que nos passa ao lado. As pessoas já não sabem controlar os seus rendimentos e as suas despesas?Um dos problemas é esse. As pessoas não sabem gerir o pouco que têm. Hoje as pessoas estafam tudo aquilo que têm. Há uma educação a fazer que não pode ser adiada. E creio que nessa educação, numa linha de preparação para a vida, o Estado tem que encontrar também alguma resposta. Os serviços do Estado em vez de estarem tanto em gabinetes têm que estar mais cá fora. As pessoas deixaram de se preocupar tanto com o futuro e vivem mais o imediato. Daí não se preocuparem com a poupança, por exemplo.As pessoas querem o gozo de agora, do dinheiro que têm agora. E acontece que cada vez mais se endividam. Com a facilidade que hoje se obtém dinheiro a crédito a situação ainda piora. Enquanto sacerdote tem a preocupação de alertar os seus fiéis para esse tipo de questões?Evidentemente. Esses problemas não me passam ao lado. Não basta dizer que temos de exercer a caridade, mas também educar para a vida e para a responsabilidade. Para que as pessoas utilizem bem aquilo que têm. E a verdade é que os pobres muitas vezes tornam-se mais pobres por culpa própria. A caridade por vezes não leva a que essas pessoas se conformem, se acomodem?Não acredito muito, porque aquilo com que se ajuda não é o suficiente para a pessoa viver. Mesmo o Banco Alimentar Contra a Fome tem obrigação de ajudar as situações mais candentes. E tem que apostar exclusivamente nos mais pobres.Como fazem essa triagem? Têm os casos identificados? Exigem comprovativos?Rigorosamente devia ser assim. Mas são casos mais ou menos identificados. E não entregamos donativos directamente às pessoas, entregamos a instituições ou grupos que estão no terreno para esse trabalho. E é aí que tem de haver muita seriedade, para não darem aos amigos mas aqueles que mais precisam. Não fica com a sensação que às vezes está a ser enganado?Fico com a sensação, até porque me vêm dizer. E a minha resposta é esta: se isso acontece, não deve acontecer. Mas prefiro continuar a correr o risco. Não tenho tempo para andar a fiscalizar. Os princípios são claros e lutamos para que eles aconteçam, mas tenho plena consciência que nem em todos os casos isso vai acontecer.Há bolsas localizadas de pobreza na região?Hoje as nossas cidades, mesmo médias como Abrantes, acabam por ser focos de pobreza. Porque há realidades que emergem das situações actuais em que as pessoas abandonaram as suas aldeias e vieram para a cidade. Vieram à procura de uma vida melhor. Mas depois aquilo desmoronou-se ao fim de pouco tempo. Os empregos foram ao ar, as hortas não existem, o recorrer ao vizinho do lado para uma ajuda de momento não há e então os dramas intensificam-se. O que há a fazer?O fenómeno começa a acontecer e vai acontecer cada vez mais: as pessoas vão ser mesmo obrigadas a abandonar a cidade e a ir para a aldeia. E vão ser mesmo obrigadas a continuar a ter as suas hortas. É a maneira de sobreviverem. Senão os roubos vão multiplicar-se. São realidades novas. Quer queiramos quer não estamos a viver um mundo novo. E nem sempre estamos preparados para o entender. Os remédios existem e as soluções hão-de ser encontradas.O paradigma de pobreza de hoje não tem nada a ver com o de há meio século.Exacto. É tudo novo.E as pessoas hoje também não estão muito disponíveis para abdicar de determinados confortos, de determinados luxos.Creio que as pessoas dantes eram educadas para uma responsabilidade e para se governarem a partir delas próprias, embora precisassem sempre de ajuda. Hoje não existe educação para a responsabilidade. E pede-se muitas vezes sem haver intenção de pagar.O que é que falhou nesta transição de épocas e costumes?Sem darmos por isso, encontramo-nos num mundo totalmente diferente. E neste mundo novo, com todas essas cargas negativas mas também com uma carga extraordinariamente positiva, há que saber discernir e ajudar a criar espaço de encontro das pessoas para a responsabilidade. De ajudar as pessoas a encontrarem-se com elas próprias e cada um lutar para que não queira tudo na gratuidade mas queira também dar o seu contributo para a melhoria da sua vida e da vida dos outros.A crise hoje é mais de mentalidades e valores do que propriamente financeira?Sim. Não tenho dúvidas nenhumas. A conversão de mentalidades é o mais difícil.Qual é o papel da Igreja nesse capítulo?A Igreja Católica tem que ser sempre esta voz profética para acreditar no Homem. E acreditando no Homem acreditar que é possível mudar e tornar este mundo mais humano, mais justo. Um mundo como espaço de felicidade para todos os homens, porque é esse o plano de Deus.

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