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“Se resolvermos o problema da educação ficam resolvidos todos os outros”

“Se resolvermos o problema da educação ficam resolvidos todos os outros”

Oriol Pena o veterinário que fez uma cooperativa numa terra de pessoas individualistas

Não perde tempo com delicadezas embora seja urbano e educado. Homem da escola antiga chama sempre os bois pelos nomes e defende as suas ideias com convicção. Oriol Pena, veterinário, foi para Almeirim para conquistar o coração de uma moira encantada e conquistou também uma nova terra. Diz com orgulho que pagou a hospitalidade com a cooperativa de enchidos tradicionais da sopa de pedra, Encherim. A sua principal obra.

Como vê a proliferação de animais de companhia?Com apreensão. Estamos perante um problema de higiene, de saúde pública e de bem-estar animal. De higiene porque vamos a andar por aí e temos que ter cuidado com o sítio onde pomos os pés. De saúde pública porque há uma série de doenças chamadas zoonoses que se transmitem ao homem e muitas das quais são de origem animal, como por exemplo a leptospirose, a raiva, as parasitoses do cão, algumas gravíssimas. E de bem-estar animal porque muitas pessoas, para além de não tratarem convenientemente dos seus animais, os abandonam.Tudo isso não seria problema se os donos tratassem dos seus animais.É verdade mas é a realidade que temos. Eu costumo dizer que o nosso país só tem um problema. É a educação. Todos os outros problemas são resultantes deste. Portugal tem níveis de educação e civilidade baixíssimos. A liberdade que uma pessoa tem de ter um cão é a mesma que eu ou o senhor temos de esse cão não nos incomodar, mas quem é que aceita isto?É saudável ter animais em casa?Se o cão estiver vacinado e desparasitado. Se o animal não tiver problemas de saúde e estiver convenientemente higienizado, é tão perigoso viver com um cão como com uma pessoa saudável. Eu insisto na desparasitação porque há situações gravíssimas que podem ocorrer.Que situações são essas?Neste momento temos no nosso país um surto de calazar. Chama-se leichmaniose no cão e calazar no homem. É uma doença gravíssima. Tem um insecto vector que é um mosquito mas o armazém desse parasita é o cão. Pode provocar chagas e em casos graves pode levar à morte. Aqui há tempos fizeram uma amostragem em meios urbanos, através de análises a cães e concluíram que mais de 40 por cento tinham leichmaniose. Isso é grave.É, mas há outras parasitoses graves. Tinha um amigo meu cirurgião no instituto de oncologia que me disse que muitas coisas diagnosticadas como cancros são quistos hidáticos. Aparece uma massa grande num determinado local, mau-estar, presume-se ser cancro e afinal é um quisto hidático. Uma formação larvar de uma parasitose do cão. Quinococose. Também é grave e obriga a cirurgia mas não é cancro.É aconselhável ter um cão num pequeno apartamento, por exemplo? Ao cão, acontece-lhe o mesmo que nos acontece a nós. Se estivermos muito tempo fechados num espaço pequeno sentimo-nos desconfortáveis, presos. Ficamos irritadiços. No caso do cão, se o dono o levar todos os dias a passear resolve isso. E é saudável?Está mais que provada a influência positiva dos animais de companhia no crescimento das crianças, de pessoas com deficiências cognitivas, autistas, por exemplo.Há muita legislação relativa a animais. Porque é que continuam a existir tantos problemas?Temos legislação riquíssima mas ninguém a executa. É um problema do país. E não é de agora. Há aquela história do general romano que quando aqui chegou mandou um relatório para Roma em que dizia que os nossos antepassados eram um povo que não se governava nem se deixava governar. Temos muitas qualidades, isso temos. Mas é lá fora. Aqui não. Não temos quem comande. A proliferação de cães está a causar problemas.E de que maneira. Tem que se fazer canil. E não é um canil qualquer. Aquilo tem uma série de exigências mínimas complicadíssimas. As autarquias não têm dinheiro. Quando não há canil a política seguida é a do abate de animais? Entre deixar andar por aí os cães abandonados e doentes ou abatê-los, é preferível abatê-los. Não é recomendável que se abatam. Eu não defendo o abate indiscriminado de cães mas entre dois males temos que escolher o menor. Isso acontece regularmente? Um município se recolhe os cães tem que ter um local para os colocar. Tem que ter pessoal para tratar deles. Tem que gastar dinheiro. O que acontece muitas vezes é que não há canil nem associações com quem os municípios possam fazer protocolos. Ou então há canil e está sobrelotado. Nessas alturas opta-se por abater os cães com uma injecção letal. Muitas vezes são cães doentes, alguns irrecuperáveis.Raramente os autarcas assumem o abate de animais.É um problema. Vêm as senhoras das associações dos animais e levantam problemas. Insultam os funcionários da câmara. É uma guerra. Eu acho os sentimentos delas aceitáveis mas todas essas associações vivem com imensas dificuldades. Sem dinheiro suficiente para tratar dos cães. Têm boas intenções, realmente têm, mas de boas intenções está o inferno cheio. E eu pergunto: entre deixar um cão cheio de sarna, cheio de doenças, andar por aí a pôr em causa a saúde pública ou abatê-lo, o que é preferível?Não é fácil encontrar uma posição de equilíbrio e de bom senso?É impossível. É a história do velho, do rapaz e do burro. Se não se apanham os cães há críticas. Se se gasta dinheiro em canis, o dinheiro devia ser gasto em coisas mais úteis e necessárias. Se se abatem cães, cai o Carmo e a Trindade. Temos estado a falar de cães mas cada vez há mais animais exóticos a serem vendidos como animais de companhia.É outra complicação. Já vi coisas incríveis. Nos Estados Unidos houve a moda dos crocodilos bebés. Quando começavam a crescer deitavam-nos pela sanita abaixo. Em algumas cidades apareceram animais com dois metros de comprimento nos esgotos.E aqui em Portugal vamos ter o quê?Iguanas. Um dia apareceu aqui uma rapariga com uma iguana enorme. Depois as pessoas não sabem o que fazer aos animais. Há uma moda muito grande que é a das tartarugas pequeninas que se vendem para pôr nos aquários. Os meus netos também quiseram mas eu não comprei.Porque cresciam e ocupavam uma divisão da casa?Se fosse isso era o menos. As tartarugas têm alguns problemas complicados. Salmonelas por exemplo. As crianças a brincar metem o animal na boca, apanham uma salmonelose, podem ficar meses num hospital. São problemas de saúde pública muito graves.Há sempre quem não resista aos encantos ou exotismo de um qualquer animal.Nós somos um país pobre mas o comércio relacionado com animais de companhia representa milhões de euros. A ASAE é imprescindívelEsteve ligado à criação da cooperativa de enchidos tradicionais utilizados na confecção da sopa de pedra… Eu não estive ligado. Fiz tudo. É o meu legado para a terra. Para Almeirim. Foi um processo que demorou trinta anos. Eu sabia que vinham aí exigências. E que os enchidos da sopa de pedra não podiam continuar a ser feitos da mesma maneira. Foi esse o ponto de partida. Houve muita vicissitude. Avanços e recuos. Eu, o presidente da câmara e mais duas ou três pessoas nunca desistimos.Calculo que seja a favor de soluções idênticas à da Encherim para outros produtos tradicionais.Eu sou um entusiasta. Certificar o melão de Almeirim, as caralhotas (pão tradicional). Se nós não o fizermos outros irão fazê-lo. A sopa de pedra não é certificada. Só os enchidos. Assinava uma petição a pedir a extinção da ASAE?Pelo contrário. Assinava uma petição para haver uma ASAE mais forte. Hoje toda a gente tem direitos. Não tem obrigações. A ASAE pode cometer alguns excessos mas é imprescindível. Devia ser incentivada e mais apoiada. Na última peritagem que fui chamado a fazer para a ASAE encontrei alimentos corruptos. Os alimentos podem ter três problemas: falta de características, avariados ou corruptos. Corruptos são os podres. Estava aqui um café e um restaurante em Almeirim com alimentos corruptos. Com bichos. E a gente sujeitava-se a comer carne daquela. Quem pode estar contra a ASAE?O senhor é de Almeirim? Agora sou. Eu costumo dizer na brincadeira que vim para Almeirim em cruzada. Os Cruzados partiam para a Terra Santa para conquistar Jerusalém. Eu vim para conquistar o coração de uma moira encantada que é a minha mulher. Hoje, passados estes anos todos, Almeirim é a minha terra. Foi difícil passar a ser de Almeirim?Dei-me bem. As pessoas daqui são muito individualistas mas são hospitaleiras. Mas este individualismo não é pêra doce. Principalmente para quem, como eu, fundei uma cooperativa como a Encherim. Ao fim de muita explicação as pessoas compreendem mas é necessário insistir, insistir, insistir. “Toda a vida fui um médico de grandes animais”O senhor quando era criança conviveu com animais?Sim. Vivia num meio rural. Era tudo diferente de agora. Nesse tempo não havia os meios de diagnóstico que há agora. Não estávamos informados sobre muitas coisas. Tínhamos cães, gatos…Foi nessa altura que despertou a sua vocação para veterinário?Eu tive um percurso complicado. Estive em medicina. A meio do curso, não tinham oficiais milicianos suficientes, fizeram o favor de me mandar para a guerra no Ultramar. Lá estive. Lá ia ficando. Lá consegui voltar. Mas aquilo deixou marcas. Só para lhe dar um exemplo. Uma manhã saí com quarenta soldados e voltei com 18. Quando regressou já não foi para medicina?Tive um regresso complicado. Quando recuperei as minhas colegas já tinham acabado, ainda retomei, depois desmotivei-me, aproveitei algumas cadeiras de medicina e licenciei-me em medicina veterinária. Não estou arrependido. Há muitos colegas seus que acabam por se especializar em animais de estimação. Consigo não sucedeu o mesmo?Costumo dizer na brincadeira que são os veterinários de salão. Sem ofensa. O mercado exige aquele tipo de profissionais.Sim. E para eles é mais cómodo. Eu toda a vida fui um médico de grandes animais. E isso é duro. Puxa pelo físico. Fazer uma cesariana e tirar um bezerro de oitenta quilos é duro. Vacinar quatrocentas vacas numa tarde, à chapa do sol, é duro.Também trata de pequenos animais?Sim, mas noventa por cento dos que tratei eram grandes animais.Por falar em grandes animais. Como vê as touradas. É sensível ao sofrimento dos animais?No meio é que está a virtude. É preciso algum bom senso. É verdade que, se virmos em termos absolutos é uma barbaridade estar a espetar os ferros nos animais. Mas também é verdade que naquele momento e com toda aquela excitação o animal não sente quase nada daquilo. E há outras coisas a considerar. Questões sociais, culturais. O problema das touradas não é simples.Calculo que tenha tratado de muitos touros bravos?Centenas. E tenho histórias muito engraçadas. Um dia se escrever as minhas memórias posso contá-las.E agora não pode?Posso, concerteza. Apanhei alguns sustos. Um touro daqueles a soprar assusta. Muitas vezes tive que fugir e saltar. Uma vez fui vacinar um touro. Nem era desses bravos. Ele estava preso com uma corrente da grossura de um pulso. Quando me aproximei com a seringa na mão ele, com uma sacudidela, partiu a corrente e veio direito a mim. Fugi mas fiquei encurralado contra uma parede. Ele chegou ao pé de mim, cheirou-me, voltou-me as costas e foi-se embora.E atrás de uma história vem sempre outra.Um dia fui chamado para tratar um touro que tinha partido um corno. Era um touro de cobrição que valia muito dinheiro. O animal estava numa manga e para tratar de um touro daqueles temos que o anestesiar. Temos umas injecções que damos e sabemos quando faz efeito pela exteriorização do pénis. O animal tem o pénis recolhido e quando larga o pénis para fora sabemos que está relaxado. Eu vi que o animal já estava anestesiado e disse ao campino para abrir a porta. E diz ele para um outro: este veterinário é muito corajoso!O instinto animal existe?Sim, tenho muitas experiências dessas. Um dia apareceu aqui um senhor com um pastor alemão que tinha sofrido um golpe muito extenso. E avisou-me logo que o cão era uma fera. Mas eu via pelos olhos do animal que ele estava a perceber que eu o estava a tratar. Cosi-o quase a sangue frio e ele não fez qualquer tentativa para me morder. Os animais são como as pessoas. Há alguns que têm um carácter nobre.E pressentem o nosso medo?Eu acho que sim. Toiros, cavalos, cães. Eles apercebem-se do que estamos a sentir. Eu tive uma cadela em casa, que morreu de velha, que percebia tudo o que eu lhe dizia. É impressionante o instinto dos animais.Obesidade, stress. Já temos cães e gatos a tomar o comprimido para o colesterol? Para a diabetes? Então não temos! A medicina veterinária tem sempre um arsenal terapêutico superior à medicina humana, por razões óbvias. Há muitos anos um colega meu fez uma fortuna. Só fazia cirurgia para donos de animais ricos. Operações ao coração aos cães. Operações às cataratas… tratar um cão com colesterol, diabetes ou problema da próstata é frequente.
“Se resolvermos o problema da educação ficam resolvidos todos os outros”

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