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“A tristeza é um sentimento normal e o sofrimento faz parte da vida”

“A tristeza é um sentimento normal e o sofrimento faz parte da vida”

Pedro Afonso, médico psiquiatra de Santarém que trabalha no maior hospital psiquiátrico do país

Pedro Afonso trabalha no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, por onde passam situações dramáticas ao nível da saúde mental. Tem também um consultório privado na capital depois de ter fechado o que tinha em Santarém por opção. O psiquiatra, 40 anos, que já escreveu vários livros e que acaba de lançar “O Inimputável”, diz que o português tem tendência para a depressão.

Com a legalização do aborto passou a ter mais mulheres a procurar ajuda?Não noto alterações porque está demonstrado que as consequências psíquicas do aborto atingem as mulheres independentemente de o fazerem de uma forma legal ou ilegal. Nem todas as mulheres ficam com um trauma após o aborto, mas muitas ficam. A sociedade ainda aponta o dedo àqueles que vão ao psiquiatra?Cada vez menos, mas ainda existem vários estigmas. O primeiro é que o psiquiatra põe as pessoas a dormir. Outro muito frequente é o de que a ida ao psiquiatra é o sinal de que a pessoa está perturbada e se torna incapaz. Tenho doentes que me pedem para nos atestados médicos não referir a minha especialidade de psiquiatra. Felizmente há cada vez mais informação sobre a psiquiatria e a doença mental.Já não se põem pessoas a dormir?Alguns ainda colocam as pessoas a dormir. Há uma explicação histórica. Havia um método terapêutico em que os doentes eram medicados com barbitúricos, tranquilizantes potentes, e durante alguns dias o doente só acordava para se alimentar e fazer as necessidades fisiológicas. Este método caiu em desuso por ser ineficaz já que quando a pessoa acorda, se tem problemas estes mantêm-se. Por outro lado, os medicamentos antigos da psiquiatria eram sedativos que causavam sonolência, enquanto os modernos permitem que a pessoa leve uma vida normal. Os tratamentos modernos resumem-se à administração de medicamentos?Os electro-choques ainda hoje são utilizados. É uma técnica eficaz em alguns doentes, não todos. É brilhante. Mas é uma coisa que ainda faz impressão às pessoas. Há mais gente a recorrer aos seus serviços?Sim, tanto no consultório privado como nos serviços públicos. Isto deve-se em parte à perda do suporte social nas grandes cidades. A migração de pessoas dos meios rurais para as cidades levou a que estas se sentissem desinseridas. Nas grandes cidades as pessoas não se conhecem, vivem muito isoladas e isso aumenta o risco de doenças mentais como depressões, perturbações de ansiedade. O stress do dia-a-dia torna-se mais difícil de suportar.Cada vez mais há médicos de clínica geral a receitarem anti-depressivos. Isso tem implicações? É um risco. Portugal é dos países que consome mais medicamentos psicotrópicos na Europa. Enquanto médico preocupo-me não tanto com a quantidade de prescrições que estão a ser feitas mas mais se os doentes estão a ser bem tratados. Se há critérios clínicos que justifiquem esse tipo de medicamentos. É verdade que nalguns casos há, por vezes, uma banalização de ansiolíticos e anti-depressivos por problemas circunstanciais da vida. É uma questão cultural?As pessoas têm uma certa cultura egoísta, em que não querem sofrer a todo o custo. O sofrimento faz parte da vida. A tristeza é um sentimento normal mas as pessoas hoje cada vez menos querem estar sujeitas a esse sofrimento e têm uma visão consumista da medicina. Temos uma sociedade neurótica…Também é verdade que as doenças mentais são muito prevalentes e há muitos doentes que, por exemplo, têm depressão, que não são devidamente tratados e a doença não é correctamente diagnosticada. Isso deve-se à falta de uma rede de cuidados em saúde mental a nível nacional?Muitas vezes as pessoas vão aos centros de saúde com queixas físicas, como dores de cabeça, problemas gastro-intestinais, apertos no peito, cansaço. Fazem-se exames em que não se detecta nada. Depois verificamos que por detrás disso há uma depressão a que chamamos de mascarada. Isso é muito frequente.Num artigo que escreveu recentemente refere que muitas vezes se foge ao silêncio durante as consultas. Porquê?Hoje em dia há cada vez menos tempo para tudo e o médico também tem menos tempo para disponibilizar ao doente. Quando estamos a falar de doenças que envolvem problemas emocionais, o doente precisa de sentir espaço, tempo e acolhimento por parte do profissional. Quando a consulta se restringe a 5 ou 10 minutos ninguém vai falar das suas coisas mais íntimas. Mas esse tempo implica o risco do médico se envolver na vida e nos problemas do doente…É importante também saber ouvir. Mesmo que algo pareça irrelevante para o diagnóstico, por vezes, por detrás de palavras que aparentemente não têm importância há aspectos importantes. O psiquiatra também é um pouco o intérprete da vida emocional do doente e ajuda-o a compreender-se a si próprio. Quanto ao risco, o psiquiatra que não treine desde o início a relação médico-doente é sempre um mau profissional. Tem que haver bom senso, capacidade de escutar e adaptação ao mundo interno do doente, como a idade, estrato social, capacidade de inteligência… Sofre com os doentes?Um profissional que não sofra um pouco com os doentes, com os seus problemas, não é um bom psiquiatra. Tem é que gerir o distanciamento e regressarmos a nós próprios e depois encontrar soluções que não passam só pelos medicamentos. Actualmente há mais pessoas a recorrer ao psiquiatra e isso faz com que seja mais pertinente aumentar a capacidade de resposta do Estado.A Organização Mundial de Saúde prevê que em 2020 as doenças mentais, nomeadamente a depressão, sejam a segunda causa de incapacidade logo a seguir às doenças cardiovasculares. A prevalência da depressão na população geral anda entre os 15 e 20 por cento. Uma pessoa com depressão não consegue trabalhar. E demora mais tempo a curar uma depressão que uma pneumonia. Isto em termos de custos sociais, de produtividade, se fossem feitos estudos sérios, verificava-se que há um custo imenso para a economia. Há grupos de risco identificados?A depressão tem três causas principais: factores genéticos, factores biológicos e factores psico-sociais. A crise económica que estamos a viver pode agudizar o número de casos da doença. Tenho notado isso em desempregados com situações económicas desesperadas. É um estado de doença resultante de um factor social grave. O divórcio tem feito aumentar também o número de casos.Até onde pode levar uma depressão?Ao suicídio, à morte.O que sente quando não consegue evitar um suicídio?Impotência. É uma fase dolorosa da nossa carreira. Quando um doente se suicida há também uma parte de nós que morre com ele.Confronta-se com situações mais dramáticas no Júlio de Matos ou no seu consultório?Tenho casos graves nos dois sítios. Mas no hospital, pela sua dimensão e número de doentes que atende, abrangendo uma área de mais de um milhão de habitantes, há situações dramáticas não só de doença mental. Deparamo-nos com situações de miséria humana nas urgências que se calhar só se vêem em cenários de guerra.“Portugueses têm tendência para a depressão”Há uma propensão dos portugueses para as doenças mentais, para a depressão?As doenças mentais têm vindo a aumentar porque são um fenómeno dos países mais desenvolvidos. É o stress, a pressão do quotidiano, o desenraizamento, a solidão…O facto de sermos um povo triste, nostálgico, melancólico pode potenciar a doença mental?Há uma certa melancolia na sociedade portuguesa, uma certa tendência para a depressão. Isso está patente no fado. Não tenho uma explicação para isso. Talvez seja um fenómeno cultural.Como é que classifica a nossa sociedade?Os portugueses são um povo pessimista e os nossos políticos são cinzentos. Quando alguém é optimista é logo acusado de estar a fazer demagogia. As campanhas eleitorais nos Estados Unidos da América são uma festa, há alegria e optimismo na política. No nosso caso os políticos passam mais tempo a desacreditarem-se uns aos outros do que a passar mensagens de optimismo às pessoas. Os nossos políticos andam deprimidos…Seguramente. A euforia do futebol, da selecção nacional, ajuda-nos a libertar?Nós projectamos muitas das vezes as nossas frustrações, desejos, aspirações, no futebol porque é uma área em que nos sentimos representados. É bom para aumentar a auto-estima e dar ânimo. Competitividade é uma forma saudável de um povo transmitir a sua agressividade. É pena que não o façamos noutras áreas como a economia.Estima-se que existam cerca de cem mil esquizofrénicos no país. Que implicações tem esta doença?A esquizofrenia é uma doença que provoca uma cisão com a realidade. Interfere na forma de sentir, na forma de pensar, de se relacionar com os outros e interfere com as capacidades cognitivas da pessoa. Os doentes muitas vezes têm ideias delirantes, alucinações. Acabam por ficar imersos numa realidade psicótica. E isso tem consequências pessoais, familiares e profissionais. Esses delírios podem ter consequências graves?Os doentes às vezes sentem que estão a ser perseguidos. O olhar das outras pessoas é interpretado como ameaçador, como perseguição. Nalguns casos tornam-se agressivos não por quererem infligir mal aos outros mas por se sentirem ameaçados.Os jovens são um grupo de risco?O suicídio é a segunda causa de morte nos jovens. O consumo de drogas é um factor de risco para o suicídio, para a depressão. Noto que os jovens têm muitos problemas, resultante de uma certa dificuldade que os pais hoje têm em educar os filhos. Passou-se de uma educação demasiado repressiva, cheia de regras, para uma situação de excesso de permissividade. O curioso é que muitos destes jovens educados desta forma acabam por serem pessoas intolerantes. A psiquiatria é usada para manipular a mente?Temo que haja médicos envolvidos na tortura a prisioneiros acusados de pertencerem a redes terroristas. Na manipulação da mente para se obterem informações. O seu mais recente livro aborda essas questões. É uma forma de escape ao rigor científico a que está obrigado?É uma atitude de protesto contra a tortura, contra o envolvimento da medicina na tortura, contra os países que a praticam. A publicidade não é também uma forma de manipulação mental?É a forma moderna e tolerável de manipular. Por exemplo, no caso dos telemóveis estão-se a criar constantemente novos modelos que potenciem novas necessidades nas pessoas. E a política?Também, mas os nossos políticos cometem muitos erros, são muito fracos na manipulação. Precisavam de aprender com alguns políticos americanos. O desinteresse dos portugueses pela política também é resultado disso, porque a mensagem não chega. Quais são os medos da nossa sociedade?Há um medo terrível da solidão e a prová-lo está o aumento de comunicações. Hoje a maioria das pessoas ficava em pânico se lhe tirassem o telemóvel durante 24 horas. Mas medo também é um negócio. Reparem como têm aumentado o número de seguros para tudo e mais alguma coisa. São uma forma inteligente de gerir e comercializar o medo.Serviços de psiquiatria no distrito de Santarém são insuficientesFechou o consultório que teve em Santarém porquê? As pessoas da zona não recorrem ao psiquiatra?Tinha bastantes clientes e há uma carência imensa nesta área na região. Mas foi uma opção. No entanto continuo a ser psiquiatra na APPACDM (Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental), no Vale de Santarém. É uma instituição que faz um trabalho notável e que tem doentes graves. Como é que vê o distrito de Santarém?Gostaria que estivesse mais desenvolvido. Esperava mais de Moita Flores na presidência da Câmara de Santarém? Foi positiva a mudança na câmara. As pessoas esperam sempre mais dos políticos. Tem havido algumas mudanças mas também há muita coisa por fazer. Santarém perdeu muito em termos de desenvolvimento em comparação com outras cidades do distrito. Passo pelas aldeias e só vejo casas à venda. É o sinal de que a população está envelhecida. Santarém tem que criar uma estratégia, pensar no que tem para oferecer ao país, para vender. Devia haver uma aposta maior no rio, no turismo cultural e, por exemplo, em congressos. O que há de positivo em Santarém?Um bom hospital distrital, com bons médicos. Já no Médio Tejo ter-se construí-do três hospitais perto uns dos outros é uma aberração e as populações são prejudicadas com isso. É um bom exemplo de como se engana a população. Como classifica a saúde mental fora dos grandes centros, por exemplo em Santarém?O distrito de Santarém tem dois serviços (Santarém e Tomar) que são claramente insuficientes. A psiquiatria fica sempre em último lugar nos cuidados à população. A saúde mental em Portugal está atrasada cerca de 30 anos. Temos um modelo obsoleto e arcaico. Temos uma nova lei que promove a descentralização da saúde mental dos grandes hospitais psiquiátricos. Mas isso não está a ser feito porque não há dinheiro para abrir serviços de psiquiatria nos hospitais gerais. É uma área desvalorizada…Sim. Por falta de capacidade reivindicativa por parte dos doentes e das famílias. É mais fácil fazer uma manifestação para defender a abertura de uma maternidade que uma manifestação de doentes mentais em frente à Assembleia da República para exigir a abertura de serviços de psiquiatria. Há este estigma. Tenho dificuldade em arranjar doentes para dar testemunhos à comunicação social porque ninguém quer aparecer como doente mental. Estas pessoas precisam de ser defendidas e muitas vezes são os médicos que fazem de porta-voz. O que é que se pode fazer?Está-se a reduzir a capacidade existente que é obsoleta e não criam serviços em alternativa. Esta razão devia merecer uma indignação por parte das populações. Um escalabitano de gema que queria ser toureiroPedro Afonso, 40 anos, nasceu em Santarém, onde vivem os pais e a irmã, e sempre que pode regressa às raízes para passar fins-de-semana em família na casa de Vale de Figueira. Por detrás do ar jovial e da figura simpática encontra-se um estudioso dos labirintos da mente humana que já leva vários livros publicados, entre técnicos e de ficção, ligados à área. “Escalabitano de gema”, estudou na cidade natal até ingressar na universidade em Coimbra, onde para além da aplicação nos estudos se destacou também como elemento do Orfeão Académico, de que foi presidente.Já formado, fez internato durante um ano no Hospital de Santarém e teve consultório na mesma cidade. Entretanto optou por exercer exclusivamente em Lisboa, onde para além de trabalhar no Hospital Júlio de Matos tem consultório privado. Gosta de ler e escrever e é consumidor compulsivo de cinema. “Voando Sobre um Ninho de Cucos” foi um filme marcante, pela temática relacionada com a sua actividade. “Foi importante porque denunciou a forma inumana como eram tratados os doentes mentais”.Em criança queria ser bombeiro ou toureiro. Escolheu o caminho a seguir quando optou pela área de saúde na Secundária Sá da Bandeira. A especialidade de psiquiatria foi eleita em pleno curso de medicina, “pela relação médico-doente com mais subjectividade”. O seu mais recente livro, “O Inimputável”, “é um protesto contra a tortura e o controlo da mente humana” em nome de desígnios como o combate ao terrorismo. Atento ao mundo, tem dificuldade em situar-se politicamente. “Por ser contra o aborto posso ser conotado com a direita. Pela consciência social, posso ser relacionado com a esquerda”. Acima de tudo é um homem de pensamento livre. Gosta de ver bons jogos de futebol mas não sofre de clubite, apesar de ter um fraquinho pelo Sporting. “O futebol é importante para descarregar frustrações e quem paga geralmente é o árbitro”, nota com humor este católico praticante e habitual colaborador de várias instituições ligadas à Igreja, onde pratica voluntariado. “As pessoas dão pouco de si aos outros”, conclui.
“A tristeza é um sentimento normal e o sofrimento faz parte da vida”

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