O dia em que as cheias dizimaram metade da aldeia de Quintas
Na freguesia de Castanheira do Ribatejo morreram 83 pessoas em 1967
Uma tromba de água inundou a aldeia de Quintas, Castanheira do Ribatejo, em 1967 e dizimou metade da população. A cheia surpreendeu de noite os habitantes que dormiam no vale alagável. A memória das 83 vítimas vai ser perpetuada num monumento junto à igreja. Quarenta e um anos depois.Ver Vídeo em: http://www.omirante.pt/omirantetv/index.asp?idgrupo=2&IdEdicao=54&idSeccao=514&id=26469&Action=noticia
Sábado. 26 de Novembro de 1967. Quintas. Castanheira do Ribatejo. Chuva miudinha. Dia de trabalho normal no campo onde era costume chover a fio durante semanas. Ninguém adivinharia a madrugada de cheias que se avizinhava. José André, 83 anos, deitou-se com a mulher numa casa térrea na zona mais baixa da aldeia. Os filhos dormiam no quarto ao lado quando o pai ouviu uma força de água. Duas da manhã. Teve tempo de chamar os rapazes, 13 e 18 anos, abrir o alçapão do sótão e empurrá-los para cima. Quando quis resgatar a mulher às águas já estava debaixo de um guarda-fato tombado.“Alguns casais foram encontrados mortos na cama”, recorda o ancião com a dor estampada no rosto. À distância de 41 anos recordar essa madrugada negra de Novembro é sofrer. As cheias desse ano assolaram a região de Lisboa, mas em Quintas dizimaram metade de população. Oitenta e três mortos. Habitantes da aldeia apanhados sorrateiramente por uma tromba de água violenta enquanto dormiam no vale. Zona considerada alagável. As cheias e enxurradas consequentes subiram o caudal do Rio Grande da Pipa ao nível do primeiro andar do largo das quintas. Hoje é impossível construir no local segundo o novo Plano Director Municipal do Concelho de Vila Franca de Xira.Quando a água chegou ao sótão José André retirou as telhas com a ajuda dos filhos. Subiram para o espigão do telhado. Não sabe como não sucumbiram ao frio. Lá ficaram com a roupa com que dormiam até de madrugada. Até que se começaram a ouvir gritos de quem observava o cenário de destruição. Gente das casas da encosta, poupada à desgraça. Viam-se corpos submersos no lodo, habitações destruídas, ruas inundadas dos despojos da noite.António Carvalho, 71 anos, veio do Casal Burro a Quintas ajudar nos trabalhos. “Chorei o caminho todo”, diz lembrando o dia em que percorreu a aldeia vizinha mergulhada na tragédia. Ajudou a lavar corpos e viu as vítimas que foram transportadas para os cemitérios de Castanheira do Ribatejo e Vila Franca de Xira. A necrópole da sede de freguesia não suportou o número elevado de mortos. “É preciso que os erros do passado não se repitam”, diz o presidente da Junta de Freguesia de Castanheira do Ribatejo, Ventura Reis, ao lado do monumento em homenagem às vítimas das cheias erguido junto à igreja da aldeia que à época da tragédia não tinha ainda lugar de culto. A autarquia erigiu o monumento à memória dos que sucumbiram à força das águas, inaugurado a 26 de Novembro, e fez uma recolha para inscrever em placas os nomes das 83 pessoas. “Foi complicado porque muitas pessoas eram conhecidas pelos apelidos”, diz o autarca que se recorda do dia da tragédia.Os meus pais morreram aquiFoi construído um bairro para as famílias afectadas. Muitas das casas na zona baixa ficaram destruídas, mas subsistem algumas. São arrecadações. Também casas de habitação de quem não teme pelo passado. Uma mulher assoma ao portão de uma vivenda nova de segundo andar com piscina. “Os meus pais morreram aqui”, diz com naturalidade Maria Rosa Silva, 64 anos.Estava emigrada na Bélgica quando aconteceu a cheia. O telegrama que enviou a anunciar que esperava o segundo filho não chegou a tempo às mãos da mãe que pereceu no interior da casa. “De sorriso nos lábios, mãos postas sobre a cama”, descreve a filha. Os guarda-fatos ficaram destruídos no momento em que o pai abriu a porta e a enxurrada de água entrou. Permaneceu um espelho suspenso no soalho, intocável. O lodo entranhou-se como cimento na chaminé. A fotografia do pai chegaria a Bélgica alguns dias depois. Nas páginas ilustradas do magazine “Paris Match”. A patroa guardou a revista em papel durante a gravidez de Maria Rosa Silva para a mostrar meses depois. É uma imagem do corpo do pai resgatado ao lodo e colocado sobre a porta arrancada de uma casa, urna improvisada. Guarda as folhas gastas da revista numa pasta, mas as memórias dos pais, gente simples que vivia do trabalho do campo, estão entranhadas no fundo de si. “Não sou revoltada. Choca-me mais quem mata sem razão ou a própria guerra. O perigo está onde estão as pessoas”, diz sempre serena a emigrante que tem filhos nos Estados Unidos. No sítio onde os pais viveram e morreram ergueu a sua casa de sonho, fruto de uma vida de trabalho. Os quartos são no primeiro andar da casa. Porque a força da natureza é impossível de medir.Como José Guerreiro salvou bebé e mulher com caixas de cebolaNa madrugada de 26 de Novembro José Guerreiro - apelido que usou para a vida - pernoitou com a mulher e o bebé de seis meses na barraca da várzea. Nas imediações do local onde funciona hoje a “Martini”.Era uma casa em madeira com todas as condições para estar mais perto do local de trabalho. Longe da casa de alvenaria, arranjada, no centro da Castanheira do Ribatejo. A noite caiu e a família abrigou-se na cama de ferro. O bebé ao meio. José Guerreiro deixou tombar o braço durante a noite e sentiu água. Água até à cama. Saltou. Chamou a mulher. Correu até ao barracão do lado, onde guardava caixas de cebola sobrepostas, a mais de dois metros de altura. Levou primeiro o bebé. Depois voltou ao quarto para levar a mulher, já a companheira chorava em grande pranto. “Eu sabia nadar, mas ela não. Não ia deixá-los lá”, conta o alentejano.Foi um amontoado de caixas de cebolas que os salvou. Dançavam enleadas as caixas enquanto a água ia subindo. Os corpos com as marcas da madeira, o bebé ensopado, a respiração entrecortada à espera que a madrugada terminasse. Depois a linha de caminho de ferro rebentou, a água foi descendo ligeiramente e a manhã chegou. Durante o dia José Guerreiro ainda quis ver o que se passava para os lados das Quintas, depois da subida e de uma descida íngreme que dá para a aldeia, mas as autoridades não deixaram passar. Lavavam-se os corpos das vítimas. Donativos para os sobreviventesOlímpio da Costa Vicente, que viu partir a família inteira nas cheias – único sobrevivente de uma família de 13 pessoas - foi um dos dois habitantes de Quintas a receber donativos, tal como José André. O jornal “O Século” dinamizou uma campanha de angariação de fundos. Participaram empresários e particulares de Portugal e do estrangeiro. No total foram reunidos 1.085.000$00 para distribuir pela população dos concelhos de Vila Franca de Xira, Oeiras, Sintra, Loures e Lisboa. Foram beneficiadas 280 famílias. Noventa e quatro só no concelho de Vila Franca de Xira. “«Pai, salva-me! E eu não fui capaz…»”, disse ao jornal “O Século” Olímpio da Costa Vicente. Era um homem forte que furou o tecto de madeira por onde escapou. Quando tentou resgatar as filhas não conseguiu. “Nunca ouvi o meu tio falar sobre esse dia”, diz Helena Ferreira, que à data da tragédia tinha 20 meses. Sobreviveu com os pais que viviam numa zona alta. Mas as cheias levaram-lhe 14 pessoas da família. Cresceu a sentir a dor da mãe e do pai. A ir ao cemitério. A tristeza pairou por muitos anos na aldeia, mas Helena Ferreira, mãe de dois filhos, a residir na Castanheira do Ribatejo, ainda não perdeu a esperança de regressar à aldeia onde cresceu.“Aldeia mártir no Ribatejo” na terceira tiragem do DN“Vivi todo o dia na aldeia mártir”, relata o repórter do Diário de Notícias no dia a seguir à desgraça que assolou a região de Lisboa, sobretudo a aldeia de Quintas, Castanheira do Ribatejo. Como todos os domingos acontecia, os homens reuniram-se no pequeno largo, que era centro de convívio da comunidade. Pela primeira vez, porém, faltavam muitos, quase todos. “O domingo chegou, mas não para eles”.A tragédia de Quintas foi relatada na terceira tiragem do jornal no dia da cheia. Os poucos que sobreviveram não tinham palavras para explicar a catástrofe. “Sinto que estou num necrotério”. Só de botas de borracha era possível transitar na aldeia. A aldeia era um lugar de gente pobre que na terra ganhava o seu pão. “Oiço frases dispersas que se repetem, martelando os ouvidos, alertando os sentidos, comovendo o coração: «Somos tão infelizes», «Perdemos a nossa família», «Como os pobres morreram», «o meu querido filho», «A minha querida mãe»”.Os Bombeiros de Benavente, Cartaxo e Vila Franca de Xira levaram dez horas para retirar os corpos sepultados nos escombros e no lodo. Quando o repórter se dirigia para a aldeia mártir encontrou um médico. “Não sei o seu nome, mas fixei as suas palavras: «Tentei mas nada tenho lá a fazer. Vão os senhores. É preciso que alguém conte a catástrofe»”.
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