De menino rebelde a investigador na área da física
João Lourenço, docente da Universidade Nova de Lisboa, é apaixonado por Azambuja
É docente de física e membro do Centro de Investigação da Universidade Nova de Lisboa. Foi comando em Angola e um jovem rebelde, filho de um carpinteiro de Azambuja. Nasceu na vila ribatejana e regressa todos os domingos para jogar ténis. É um dos dirigentes do Grupo Desportivo de Azambuja. Em Março vai discutir a tese de doutoramento.
Nasceu em Azambuja. Os seus pais já eram da terra?Sim. Toda a minha família. O meu pai tinha uma oficina de carpintaria ao lado do edifício onde funciona hoje a Caixa de Crédito Agrícola. Era ali que viviam. Era um pequeno industrial. A minha mãe era doméstica.Como foi a sua infância? Dentro da realidade da altura, e tendo em conta que estávamos num meio essencialmente agrícola, não posso queixar-me. Eram poucos os que iam estudar. Eu e o meu irmão mais velho fomos para a então Escola Industrial Afonso Domingues, em Lisboa. Por falta de alternativas em Vila Franca de Xira.Ao contrário dos seus amigos.Alguns foram aprender o ofício para a casa de meu pai, outros foram para outras carpintarias. Uma minoria seguiu para as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, em Alverca. Na altura o meu pai tentou dar o melhor aos filhos. Fizemos a admissão à Escola Técnica, o que era muito raro. Só algumas famílias conseguiam.Tinha a noção de que estava a ter uma oportunidade e poderia chegar mais longe?Sim. Esse foi sempre o meu grande objectivo. Éramos três irmãos, mas não éramos três irmãos iguais embora a origem fosse a mesma. Eu era muito rebelde. Era o filho do António Lourenço que mais fugia ao protocolo e à educação normal. Regressei do Ultramar e casei-me, mas a minha ideia foi sempre continuar. Só poderia progredir à base do estudo e isso obrigou-me a ter que fazer um esforço para conseguir o que consegui. Desde a Afonso Domingues até ao último grau académico de doutoramento que estou prestes a concluir.Era estudioso ou sempre teve facilidade nas matérias?Essa coisa de ser estudioso – sei do que estou a falar porque dou aulas - exige criatividade e inteligência, mas exige também algum esforço. Tive que roubar alguns fins-de-semana à minha mulher e às minhas filhas para fazer o que fiz. Fui para o estrangeiro e cheguei a viver seis meses em Amesterdão. Não é fácil ausentarmo-nos com o objectivo de fazer sempre mais e melhor.Casou muito jovem?Casei depois do Ultramar, aos 24 anos. A tropa roubava a possibilidade às pessoas de continuar estudos. Fui obrigado a cumprir o serviço militar. Havia quem pagasse para que os filhos não fossem. Iam outros no lugar deles. O meu pai não tinha essa possibilidade económica. Onde esteve?Angola. Cheguei em princípios de 1968 e voltei em Abril em 1970. Fiz parte da 12ª Companhia de Comandos. Casei depois, em Dezembro de 1970. O meu sogro esteve algum tempo nas finanças de Azambuja. Foi assim que conheci a minha mulher.O Ultramar foi uma experiência difícil?Fui para o Ultramar em plena juventude. Fiquei longe da família e dos amigos. E cheguei a um país onde predominava uma mentalidade completamente diferente. Eles eram muito mais abertos. Esses anos marcaram a minha vida. Estava numa companhia de comandos e as coisas não eram fáceis. Não foi uma tropa de ar condicionado. Vivia-se uma guerra. Todos os momentos marcaram. Colegas mortos, flagelações, emboscadas. Foi bom e mau. A experiência ensinou-me a ver a vida de maneira diferente. Raramente falo nisto… Prefere não recordar.Tenho muitas fotografias, mas normalmente não recordo. E deixei mesmo de ir a almoços de confraternizações de comandos. Há gente que está a passar maus bocados devido aos traumas que tiveram dessa guerra. Houve quem fizesse poesia. Que tipo de escape tinha?Os momentos em que tinha possibilidade de encontrar conterrâneos.E isso acontecia?Encontrei muita gente de Azambuja. Era uma festa. Sabia pela minha mãe, que me avisava quando estava para chegar alguém. Juntávamo-nos e confraternizámos. Esses momentos tinham um sabor tão especial que a esta distância me permitem dizer que nem tudo foi mau.Como é que olha hoje para o serviço militar?O que se passou na decorrência do 25 de Abril foi inevitável. Sentíamos isso quando lá estávamos. Hoje não existe o espectro da guerra. E os militares que vão para zonas de conflito vão como profissionais. Já não há a obrigatoriedade do cumprimento do serviço militar. E ainda bem.Se pudesse teria escapado à tropa? Ou partilha da opinião de que também lá se fazem homens?É uma pergunta difícil. Nunca me questionei sobre a primeira parte da sua questão. Em relação à segunda parte não há dúvida que penso que naquela altura a tropa também tinha um lado menos perverso que era o de permitir que algumas pessoas pudesse conhecer outros horizontes e realidades. O engenheiro de Azambuja Quem o encontra a jogar ténis no campo de Azambuja, nas traseiras das piscinas municipais, a um domingo de manhã, não imagina que o homem de fato de treino e óculos de sol é um dos investigadores reputados na área da física da Universidade Nova de Lisboa, a um mês de apresentar a tese de doutoramento.Está prestes a alcançar o topo da carreira académica, mas continua a ser João para os amigos. O menino rebelde, um dos três filhos de um carpinteiro de Azambuja que subiu a pulso na vida. A partir do sétimo ano João Manuel Cachado Lourenço, 63 anos, aventurou-se de comboio para a capital com o irmão mais velho. Um percurso diário à procura de uma resposta educativa que não existia então fora de Lisboa. Horas passadas em comboios procedentes do Norte com destino a Lisboa. “Quando traço objectivos não me desvio. No campo académico, claro. Para atingir outros objectivos não passo por cima das pessoas”. Na tese que está prestes a apresentar tem um poema das filhas que homenageiam o profissional e o pai excelente.Fez o bacharelato em electrónica e comunicações no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa e seguiu depois para a licenciatura em engenharia física na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Um percurso interrompido pela guerra colonial onde alinhou numa companhia de Comandos. Obteve o grau de licenciado já casado e com duas filhas. Tem um mestrado e está prestes a defender a tese de doutoramento. Já são mais de meia centena o número de participações em congressos nacionais e internacionais, mas continua a vestir calças de ganga. A residência oficial da família é em Odivelas, mas é em Azambuja, por cima da velha oficina do pai de João Lourenço, que a família se reúne.Começou a jogar ténis de mesa no GDA com um irmão já desaparecido que foi provedor da misericórdia. Integra os corpos sociais do grupo. “É muito mais cómodo ficar em casa a ver um jogo. Mas isto é importante e a prova é que temos aqui muitos miúdos. É uma forma de complementar a educação lá de casa e de evitar que se desviem”, atesta.Quando não está a trabalhar na sua investigação - a analisar superfícies ou novos materiais - pode ser encontrado de raquetas na mão na sua Azambuja natal. O engenheiro admite alguma falta de romantismo, mas agradece a cumplicidade da esposa, Fernanda Teixeira, que trabalha como empresária da área dos transportes. Tem duas filhas, uma gestora bancária e outra jurista, e dois netos. Trinta e oito anos depois o casal continua apaixonado. Na última gala do Grupo Desportivo de Azambuja o presidente do conselho fiscal da associação recebeu o prémio excelência e uma declaração de amor inesperada da mulher que garantiu perante “a família GDA” que se voltasse atrás faria tudo de novo.“A competitividade vai existir cada vez mais”O docente universitário acredita no valor da nova geraçãoQue ideia tem sobre a juventude?A ideia que eu tenho é aquela que tenho dos meus filhos também. Acredito muito na gente nova. Não podemos colocá-los a todos no mesmo saco. Na vida houve sempre gente capaz e incapaz. Acredito que esta gente jovem está capacitada e tem conhecimentos para avançar. Têm uma maneira diferente de analisar as coisas que não deixa de ser positiva. Tem proximidade com os seus alunos?Sempre tive. Não digo que não existam universidades que tentem manter algum distanciamento, mas nos tempos que correm as coisas estão muito mais próximas. Não tenho pejo em dizer que sempre que se proporciona tomo café com eles. Permite-me aferir das suas expectativas e inclusivamente partilhar algumas preocupações pessoais.É um futuro com boas perspectivas tendo em conta a área…O futuro é incerto em todas as áreas. As pessoas estão lá e tiram os cursos, mas o mercado de trabalho tem dificuldade em absorver essa gente. Tenho colegas que tiraram doutoramentos em Inglaterra porque viram que as possibilidades aqui cada vez eram menores. Hoje em dia é fácil encontrar-se um engenheiro num banco… Porque se coloca a questão da sobrevivência. Formam-se bons engenheiros em Portugal?Penso que sim. Há gente nova, empreendedora e criativa. Antigamente acabava-se o curso e já se sabia para onde se ia. Hoje em dia tem que procurar-se. Mas é comum ver-se engenheiros e outros profissionais juntarem-se e criarem os seus próprios postos de trabalho. A sua primeira escolha foi electrotecnia. Como se apaixonou?Tinha alguma apetência. Até porque já tinha tirado o curso de electricidade e dava continuidade à minha formação no ensino secundário. Essa foi a razão objectiva. Na escola tínhamos a hipótese da serralharia e da electricidade. Entendemos que a segunda opção era mais higiénica. Quando fui para a Holanda tirei o mestrado na área da física de superfícies na sequência da licenciatura. Houve alguma conversão. Mas há uma certa afinidade entre a electrotecnia, a física e, naturalmente, a matemática que está sempre ligada a estas coisas. O engenheiro tem que saber matemática e o físico também. Os grandes físicos foram grandes matemáticos. Há a ideia de que são áreas um pouco inacessíveis. É preciso compreender a matemática, mas o trabalho também é importante. A pessoa tem que fazer muitos exercícios para se poder mecanizar. Em disciplinas como a História aprendemos que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal. Na matemática é preciso aplicar um conhecimento mais elaborado com o domínio das operações. A ginástica mental é adquirida à custa do trabalho e de muitos exercícios. Como em tudo na vida tem que haver um esforço muito grande. Então a culpa não é só dos professores.Não digo que não haja um caso ou outro. Tem que haver sempre exigência dos alunos em relação ao trabalho. E esse trabalho é pedido e muitas vezes as pessoas não fazem. Vivemos uma altura de grande competitividade.A competitividade vai existir cada vez mais, mas os bons são sempre bons e terão sempre lugar. O valor vem sempre ao de cima. Mas temos que tentar ser melhores. Não nos podemos acomodar.
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