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Pintar com cores fortes para derrotar a escuridão

José Guilherme escolhe tons que compensam a falta de luz natural no atelier

José Guilherme pinta todos os dias a óleo e aguarela. A imagem de Jesus, paisagens naturais, o touro bravo e crítica social pautam a obra do pintor que já expôs no Japão e em Espanha.

Montemor-o-Novo, 1968. José Guilherme tinha 16 anos e fora convidado para visitar mestre Martins, um inspector da CP, pintor nas horas vagas, que aprendera com Dórdio Gomes e ouvira falar num jovem promissor que estudava no concelho. O então adolescente, chegado a casa do artista, depara-se com uma tela de dois metros por metro e meio e metade da superfície com pintura iniciada. A outra metade, recorda, era para si. Depois de terminar a pintura, o jovem escuta o mestre. “Não vou tocar na parte que pintaste mas tens de prometer que não vais esconder essa capacidade de ninguém nem parar de pintar”, sentenciou. José Guilherme, 57 anos, residente em Alverca, cumpre a promessa diariamente. “A pintura dá-me um certo conforto durante o dia, faz-me sentir-me bem. Preciso dela como alimento do corpo e do espírito todos os dias”, conta José Guilherme. As aguarelas, pintadas no quarto de trabalho e os óleos, nascidos na garagem transformada em atelier, preenchem a vida do artista, antigo desenhador industrial. “Mesmo quando trabalhava, todos os dias tinha de pintar ao fim do dia, mesmo que fosse apenas uma aguarela pequena”, confessa. E ambas as divisões, repletas de quadros, não desmentem o artista, que pinta aguarelas desde os quatro anos, e a óleo desde os 16. As cores das telas, mais fortes que o tom natural dos objectos, reflectem um objectivo – derrotar a falta de luz. “Não gosto de quadros em que os objectos pareçam, quero que estejam perto. E como pinto na garagem, sem luz, natural, tenho tendência a carregar nas cores. Quando trago os quadros à luz do dia, noto-o, bem como pormenores que não notava antes”, conta José Guilherme. Nascido em terras alentejanas, o pintor não esconde o fascínio pelos touros e campinos (ver caixa), embora sinta o coração dividido por causa do sofrimento do animal. “Não costumo ir ver touradas, mas penso que são um elemento cultural importante e não deviam acabar”, defende. Nas telas, o pintor, neto de um campino de Simão da Veiga, retrata os animais em cenários de tourada, com campinos e à solta, na planície.A pintura de intervenção faz também parte da obra do artista. Um quadro com quatro homens de traje alentejano à mesa, um deles de origem africana, simboliza a presença moura naquela terra. Outro, com figuras de um polícia e um empresário com sorrisos distorcidos face a um trabalhador, é uma resposta às cargas policiais sobre os trabalhadores da Marinha Grande na década de 90. E nem os ícones religiosos escapam ao olhar de José Guilherme. Jesus Cristo, que para o artista é “alguém que veio à terra para nos orientar”, surge numa de várias telas sobre a figura bíblica, com cabelo castanho em vez de louro, e nas mãos, o planeta Terra em lugar do tradicional coração em chamas. A obra de José Guilherme começou há três anos uma fase de internacionalização, com participações nas edições de 2006 e 2007 do festival de arte “Creadores”, que se realiza em Córdova, Espanha. Em 2008, uma amiga japonesa solicitou-lhe um lote de dez quadros, para expor com os seus no Tokyo International Forum, na capital do Japão, para a exposição “France et six nations – l’art actuelle”. Os mesmos quadros têm já viagem marcada para Nova Iorque, nos Estados Unidos e São Paulo, no Brasil, pela mão da mesma amiga. Mas José Guilherme não se mostra muito afectado. “Não faço muito por dar a conhecer o que pinto. Aconteceu.”, sublinha.A primeira exposição em que o pintor participou, em território português, data de 1983, em Alverca, por ocasião do aniversário da Cooperativa de Habitação Chasa. Desde então o gosto por mostrar o trabalho realizado levou-o a várias galerias municipais do Alentejo, Estremadura, Ribatejo e Oeste. Desde há quatro anos, expõe e pinta ao vivo no posto de turismo de Santa Cruz, durante o mês de Agosto, onde descobriu uma nova faceta da arte. “Tenho o prazer de perceber que não sou afectado pelo facto de ter pessoas à volta enquanto pinto. E ao mesmo tempo, ganhei vários amigos de seis, sete anos, que se juntam a ver-me pintar ao longo dos anos, fazem perguntas e a quem pode ser que transmita o gosto pela pintura”.O touro retratado como um leão “Sou capaz de estar horas a observar o touro”, confessa José Guilherme. “É um animal com uma inteligência muito semelhante à de um leão, acima da média. É capaz de observar, de detectar outros animais pelo cheiro que o vento lhe leva. E aceita a convivência com outros animais, nos urros com que os touros comunicam uns com os outros”, conta o pintor. José Guilherme reconhece no touro bravo uma figura animal sem par. “Não devia passar indiferente aos humanos. deve ter uma missão, não é uma vaca para abater”, sublinha. A personagem do campino, que os guarda, foi a primeira que desenhou em aguarelas, guardados em casa da mãe. “Não sei se foi por causa do meu avô, se por gostar da figura, mas foi uma tendência que sempre se manifestou”, relata. No quadros, os tons dos touros e dos campinos variam entre a cor natural, na maior parte, e o púrpura, numa tela em que a figura taurina se lança sobre a humana, em plena lezíria. A ajuda de Júlio Carmo Santos e João MárioDepois de várias décadas em que a aguarela serviu como escape e o óleo como passatempo de fim-de-semana, José Guilherme regressou há poucos anos em força à pintura. O menino que foi encorajado por uma secretária de Azeredo Perdigão a vir estudar para Lisboa, mas optou por aprender desenho industrial no Alentejo por influência dos pais, ganhou finalmente espaço para criar sem restrições. “Para voltar a pintar aguarelas com mais rigor, contei com o apoio de Júlio Carmo Santos. O aperfeiçoamento das pinturas a óleo contou com a ajuda com João Mário, de Alenquer, como guia”, conta. À criatividade dos dois pintores, José Guilherme juntou a disciplina do desenho de projectos para maquinaria que durante vários anos lhe deu ganha-pão. “Nunca deitei um quadro para o lixo”, declara.Se a pintura a óleo, favorita na maior parte das pinturas, porque “dava gozo e permitia corrigir” preenche as necessidades de segurança do pintor, o mesmo reconhece “que ao pintar uma aguarela tudo tem de sair bem à primeira”. Apesar de garantir “começar uma pintura com a responsabilidade de o fazer de modo que não o estrague”, José Guilherme confessa: “no óleo não é preciso ser tão responsável . Esforço-me mais para fazer uma aguarela. Uma pintura a óleo é mais confortável”.

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