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“Jogadores desabafam comigo coisas que não contam aos pais”

“Jogadores desabafam comigo coisas que não contam aos pais”

João Luís Pernes é um exemplo de dedicação à formação no futebol

Foi um dos melhores jogadores de sempre no distrito de Santarém. Deixou de jogar há 13 anos, mas não arrumou as botas e dedicou-se à formação no Grupo Desportivo de Samora Correia onde conhece pelo nome os duzentos atletas que ali treinam.

“O futebol é a minha vida”. A frase sai com naturalidade num discurso simples e emotivo de quem entregou a vida ao desporto. João Luís Pernes, 48 anos, experimentou ser profissional de futebol. Viveu do futebol, mas optou por ser amador. Ama o que faz. Vive para o futebol e para o seu clube de sempre. É um caso raro de dedicação com mais de 20 anos na formação de crianças e jovens. “Conheço todos pelo nome”, diz, o coordenador do futebol juvenil do Grupo Desportivo de Samora Correia que lida com mais de 200 jovens jogadores.João Luís acompanha hoje filhos de jogadores a quem ensinou os primeiros passos no futebol. “É muito bom ser amigo dos pais e agora ser amigos dos filhos. O melhor que o futebol nos dá é esta amizade sincera”, refere o formador que seguiu a linha do Professor Reis Vaz, um técnico que há 25 anos ensinou a arte da formação de atletas e de homens. Deixou uma bíblia que ainda hoje é seguida pelos seus discípulos. Mário Alexandre e Jorge Silva, treinadores dos iniciados do Samora Correia, que no domingo festejaram o acesso ao nacional (feito histórico na vida do clube) são dois frutos da sementeira lançada por Reis Vaz a que João Luís deu continuidade. “Um treinador tem de ser muito mais que um técnico. Eu sinto-me pai de muitas destas crianças e jovens. Alguns desabafam comigo coisas que não conseguem falar com os pais”, refere o coordenador que é contra a retirada do futebol dos atletas com notas negativas. “O meu filho esteve fora do futebol porque não tinha boas notas e a situação não melhorou. O futebol faz parte das suas vidas, não os podemos afastar. Há outros castigos mais eficazes”, adianta o técnico que é também pedagogo, psicólogo, professor, motorista, roupeiro, conselheiro e acima de tudo amigo. “A confiança conquista-se todos os dias nos pequenos gestos. Temos de manter o respeito, mas não precisamos de ser agressivos”, adianta.João Luís não se tem dado mal com a sua conduta. Todos o apontam como uma referência no futebol e um exemplo a seguir. Como jogador foi exímio dentro e fora das quatro linhas. Foi capitão na maioria das equipas onde jogou. Contam-se pelos dedos os cartões que os árbitros usaram para o advertir. O antigo defesa central procura incutir o mesmo espírito e a mesma linha aos jogadores com quem trabalha. E quem andar desalinhado é chamado à atenção. “Não basta serem habilidosos e marcarem muitos golos. Têm de ser homens”, alertaJoão Luís lamenta que os pais não acompanhem mais os filhos. Apenas cinco por cento assiste aos treinos e aos jogos com regularidade. “Entendo que têm que trabalhar, mas alguns usam o futebol como um sítio seguro para deixar os filhos sem pagar nada”, lamenta. E quando alguma coisa corre mal, nem sempre as crianças são culpadas. É preciso ver os factores que motivaram a situação. “Alguns são maus porque têm vidas muito complicadas. Precisam ser mais apoiados”, refere o técnico que ajudou a recuperar alguns jovens que prepararam uma bomba para colocar na escola e outros que estavam nas malhas da droga. Situações em que os pais já não conseguiam fazer nada. “O futebol é que os recuperou e hoje são homens a sério”, diz, pedindo para não citar os nomes que utiliza e que o repórter de O MIRANTE conhece.Mas nem tudo foi sucesso nesta missão que “alia o desporto à formação do Ser”. Alguns jogadores perderam-se para o futebol e para a vida. “Nunca lhes deixei de falar e de dar conselhos. Ainda me tratam por “mister”. São situações muito duras porque já tive antigos jogadores que morreram na droga”, adianta.João Luís tem três filhos. Os dois rapazes, João Vítor e Bruno Pernes, são jogadores e estão ao nível dos melhores. O treinador reconhece que há qualidades que nascem com os rapazes. “Depois é preciso trabalhar muito para as aperfeiçoar”. João Luís ainda não descobriu nenhum Cristiano Ronaldo, mas pelas suas mãos passaram jogadores que fizeram carreiras de bom nível e chegaram aos campeonatos profissionais.“Tivemos aqui muitos valores que não foram observados porque a Associação de Santarém esquece a ponta do distrito”, adianta.Curioso é que alguns dos pupilos de João Luís acabaram por ser seus colegas de equipa. João acarinhou-os como se ainda fossem os seus rapazes. Ganhou amigos para a vida.“Um grande formador de jovens”Mário Alexandre, 36 anos, é o actual treinador dos iniciados do Samora Correia. Foi jogador de João Luís nos escalões jovens do clube e 15 anos depois foi colega de equipa nos seniores e jogou na II Divisão Nacional. “Nunca vi uma atitude negativa do João Luís. É um senhor como homem e como treinador. Verdadeiro amigo do seu amigo, bom conselheiro, e sempre pronto a ajudar”, refere o docente licenciado em Educação Física que viu em João um professor que aprendeu na escola da vida. “É uma referência pela sua forma de estar, pela humildade e pela dedicação que tem tido ao futebol juvenil aqui em Samora Correia”, remata.Um campeão na dignidade e na dedicação A dedicação e a dignidade são duas palavras que Jorge Silva escolhe para definir a ligação de João Luís ao futebol. O treinador dos iniciados, foi jogador do clube, trabalhou com João Luís no início da sua caminhada no futebol e viria a ser seu colega na equipa sénior do Samora Correia. “O João foi sempre uma referência para todos nós porque é uma pessoa extraordinária, sempre disponível para apoiar os mais novos”, refere. Jorge Silva lamenta que João Luís não tenha chegado ao topo do futebol porque “tinha qualidades para isso”, mas o amor ao seu clube e à sua terra fez com que não tivesse aproveitado todas as oportunidades que surgiram como jogador e como treinador. Uma dedicação de corpo e alma ao futebol juvenilJoão Luís Pernes trabalha num restaurante em Porto Alto e reparte a vida entre o emprego e o futebol. Todos os dias passa pelo Campo de Jogos da Murteira em Samora Correia. Nunca dedica menos de quatro horas diárias aos ses rapazes. É precisa cuidar da área administrativa, do posto médico, dos transportes, da logística, dos equipamentos e das bolas. “Já ninguém joga com botas rotas ou equipamentos velhos e a cheirar a mofo como no meu tempo. Eles têm boas condições”, realça. Com a ajuda dos directores e de alguns pais prepara as sandes e os sumos para os lanches dos jogadores em dia de jogos. Os sábados e domingos são dedicados por inteiro ao futebol. É assim há 32 anos desde que chegou ao clube com 16 anos, vindo de Angola. Saiu do Samora algumas épocas para jogar e treinar outros clubes. Levou o União de Almeirim aos nacionais como jogador treinador. No distrito de Santarém são poucos os jogadores, treinadores e adeptos de futebol que não o conhecem. Tem pena que o futebol distrital esteja a morrer lentamente. Garante que enquanto puder vai apoiar a formação porque “o futuro está nos jovens”.
“Jogadores desabafam comigo coisas que não contam aos pais”

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