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O militante com paredes de vidro

O militante com paredes de vidro

As múltiplas facetas da vida de Sérgio Ribeiro, o comunista do Zambujal

Cultura, desporto, economia e política. Essas são algumas das ilhas que compõem o arquipélago de causas e paixões de Sérgio Ribeiro, 73 anos, um militante comunista que faz da luta de classes uma das razões de viver. Na casa que herdou do pai, no Zambujal, arredores de Ourém, falou-nos do seu percurso de vida, da luta contra o cancro, da expulsão do PCP, partido em que foi de novo aceite. Foi preso político, autarca, eurodeputado, professor universitário, dirigente associativo, escritor, jornalista, pai, companheiro, camarada. Gostaria de ficar recordado no epitáfio como “Sérgio Ribeiro, um gajo porreiro que faz cá falta”. João Calhaz.

Editou no ano passado um livro onde percorre os seus 50 anos de economista e militante do PCP. Falta contar quem foi e o que fez Sérgio Ribeiro até aos 20 anos?A minha infância não tem nada que mereça ser especialmente referido. Sou filho de um casal da pequena burguesia. Nasci em Lisboa, onde o meu pai trabalhava. Se o meu pai na altura tivesse carro, teria vindo nascer aqui ao Zambujal, nesta casa onde ele nasceu e onde eu vivo. Por isso digo que sou oureense. Só nasci em Lisboa porque a vida me empurrou para aí. As raízes estão todas aqui. Fez a escola aqui?Não. Fiz a escola em Lisboa mas vinha cá todas as férias, todos os fins-de-semana. Que memórias é que guarda da sua infância no Zambujal?Tenho as memórias de brincar com os meninos de pé descalço. Esse foi um dos factos que despertou a minha maneira de estar na vida. Achava injusto ter uma bola e eles só terem bexigas de porco. Que eu trouxesse sapatos e eles andassem descalços. Fez-me sentir que havia muita injustiça, muita desigualdade. Essas situações ajudaram a formar a sua consciência política e cívica?Sim. Assim como também não esqueço que da minha turma da quarta classe fui o único que seguiu os estudos. Senti que havia alguma coisa que não estava bem.Teve consciência que era um privilégio seguir os estudos nessa altura?Tive noção que havia desigualdades. Mas quando cheguei ao Liceu Pedro Nunes encontrei a outra faceta. Eu era o que vinha do bairro pobre e eles eram os que vinham da Lapa. Eram os filhos dos ministros, dos gajos da PIDE. À medida que ia crescendo fui apanhando as duas facetas: A do privilegiado e a do desprivilegiado. Estava no meio e acabei por cair para um dos lados. Entendeu que era no PCP que podia lutar contra esse estado de coisas?Esta consciência nasce antes da mili-tância no PCP. Depois quando procurei encontrar formas de fazer alguma coisa por aquilo que eu entendia que devia fazer encontrei o PCP, que foi a minha escola de vida, escola de tudo. E continua a ser.Como é que começou a ser um jovem politizado?Foi por essa via. No liceu podia ter encontrado colegas que fossem voltados para outras coisas, mas encontrei alguns colegas como eu que estavam também à procura das coisas. Como diria o Ortega y Gasset, o homem é as suas próprias circunstâncias. Foram as circunstâncias que me fizeram como sou.O seu pai era também uma pessoa politizada?Era um homem com a quarta classe. Tinha a sua cultura não académica mas tinha a sua sensibilidade. Ajudou-me muito. Teve uma importância muito grande porque alguns valores que adoptei e me parecem justos foi ele que me os foi instilando. A amizade, a solidariedade, o gosto pela terra, o amor a Ourém. Era um homem com grande sentido associativo.O seu pai chegou a acompanhá-lo numa aventura autárquica aqui em Ourém.Foi nas primeiras eleições autárquicas, em 1976, que integramos as mesmas listas. Tinha ele 78 anos. Era um anti-fascista, mas nunca esteve ligado ao PCP. Só descobriu que o partido existia por meu intermédio. Tinha um sentido de resistir às injustiças e um grande sentido de solidariedade e de amizade. Era um activista do associativismo. Em 2000, Sérgio Ribeiro decidiu abrir a livraria Som da Tinta, em Ourém, que entretanto fechou. O economista fracassou como comerciante?Era um projecto de fim de vida. Mas aquilo nunca foi um projecto comercial. Tinha algum dinheiro que sobrava do essencial e pensei ter um centro de iniciativas culturais, de intervenção cultural. Veio cá o Mia Couto, o Pepetela, o Saramago, que era um dos sócios. Acabámos com 39 sócios. Era uma livraria que tinha intenção de sobreviver economicamente.Mas que falhou…Diria que não falhou nada. Teve uma vida normal nas condições que são as de Ourém. Em sete anos fizemos coisas sempre contra muita coisa. Nunca tivemos o apoio da câmara e, a partir de certa altura, passámos a ter a hostilidade claríssima da câmara. Nunca tivemos o apoio, por exemplo, do PS; que sempre viu aquilo como uma coisa ligada ao comunista, que era eu.Mas tinha gente ligada ao PS.Tinha, como o José Manuel Alho, que foi sócio. Acho que o PS tem o complexo do eucalipto, gosta de secar tudo à sua volta. A cultura não é viável como negócio? Não consegue viver sem apoios ou subsídios?Não consigo falar disso como negócio. Acho que a cultura pode ser viável economicamente, mas depende também das condições. Quando fundámos a livraria existia um ministro da Cultura que tinha um programa de apoio à criação de livrarias em todas as sedes de concelho. Candidatámo-nos a esse apoio e o nosso projecto tinha viabilidade económica se esse apoio tivesse continuado. Se a câmara tivesse tido uma atitude diferente. Editámos dois livros sobre Ourém e nem um exemplar nos compraram. Teve a ver com o facto de ser opositor da gestão autárquica, de ser comunista?Penso que sim. No 25 de Abril estava preso em Caxias Ser comunista em Ourém é um acto de resistência.Acho que ser comunista em qualquer lado é um acto de resistência. Nalguns sítios mais do que noutros. Ser comunista é lutar por uma sociedade diferente desta, onde há poderes instalados que evidentemente seriam prejudicados se nós conseguíssemos aquilo que queremos. Nós oferecemos resistência a isso. O 25 de Abril de 1974 apanhou-o na prisão.Saí no dia 27. Depois vivemos até ao 25 de Novembro de 1975 uma abertura de caminhos. O que eles iam dar não sabemos, a não ser que iam no sentido de lutar contra as desigualdades, contra as assimetrias regionais. Fizemos trabalho nesse sentido, que foi o de abrir caminhos. E na altura em que esses caminhos podiam começar a ser percorridos foi o corte. Porque era muito perigoso. Mas já tinha havido eleições livres e o povo dera a maioria dos votos ao PS e ao PSD, não preferindo a via comunista. Sabe que houve muita gente que votou no PS convencida que votava naquilo que lia sobre a República Democrática Alemã? Que era a Alemanha socialista. O problema tem a ver com a informação.Mas a Alemanha socialista também faliu?Não faliu. Lá está você com a terminologia do negócio... Faliu no sentido em que o regime colapsou.Faliu porque há um momento histórico na luta de classes em que uma classe perde na relação de forças. E perdeu porque a outra força foi mais forte e do lado de dentro houve traições. A sua militância comunista não vacilou quando o muro de Berlim foi derrubado?Em nenhum momento. Nunca fui comunista por existir a União Soviética. Mas há uma forte componente internacionalista no comunismo. E a União Soviética era o farol dessa ideologia.Também não gosto da palavra farol. Era uma referência, uma ajuda que se perdeu. Mas sempre fui de um partido chamado Partido Comunista Português. Foi uma desilusão o processo que levou ao colapso dos regimes comunistas na Europa?Seria uma desilusão se nos tivéssemos iludido. Diria que em política a pior coisa que existe é essa da desilusão. Porque só há desilusão em política porque as pessoas se iludiram primeiro. Alguma vez se sentiu iludido em política?Posso ter tido esperanças, posso ter feito projectos a partir de determinados cenários, mas procuro não me iludir.Continua a acreditar nos amanhãs que cantam?Não é uma questão de acreditar. É uma convicção muito profunda de que isso que você chama de amanhãs que cantam é uma forma poética de dizer que amanhã a vida será mais justa, mais humana. Por esse amanhã que canta lutarei até ao fim da minha vida. A crise que se vive agudiza a luta de classes?A crise que se vive é do capitalismo, que é um sistema que vive sempre em crise. E de vez em quando tem explosões. Esta é uma explosão gravíssima porque atingiu um nível de financeirização que não se aguenta. A saída deste momento de crise vai ser muito complicada. Não ficou triste quando viu alguns camaradas seus abandonarem o partido?Fiquei muito triste. Pela Zita Seabra, por exemplo?Por essa não fiquei nada triste. Dos poucos contactos que tive com ela como dirigente do partido senti que um de nós estava mal ali. Tinha um comportamento que não era de camarada, que não era de comunista, de solidariedade, de companheirismo, de respeito pelo outro. E o que pensa da expulsão da deputada Luísa Mesquita?Foi uma mulher que tive como camarada e dei-me muito bem com ela. Tinha muito respeito pelo trabalho que ela fazia. Fui mandatário da lista em que ela foi cabeça de lista por Santarém, há quatro anos. Sempre pareceu uma mulher com grande pendor para o individualismo, para o protagonismo, mas que durante muitos anos colocou ao serviço de uma causa. Chegou uma altura em que prevaleceu o protagonismo sobre o colectivo. É um processo de que tenho pena, mas o problema é dela. O senhor também foi expulso do PCP, nos anos 60, e divulgou-o publicamente no seu livro de memórias editado no ano passado. Isso foi sempre assumido com toda a clareza, não foi é tornado público. Porque não tinha de ser. Era uma relação que tinha a ver comigo e com o partido. E quando o partido e os seus dirigentes me expulsaram fizeram aquilo que tinham de fazer. Mas eu não expulsei o partido de mim. Foi um momento de fraqueza, não traí. Presumo que tenha sido uma experiência traumática.Foi um momento muito difícil da minha vida, que assumi sempre. Somos o que somos. Temos momentos de fraqueza e naquelas circunstâncias não aguentei. Nunca quis justificar-me. Quis sempre assumir. Porque havia camaradas meus que resistiram em condições piores que as minhas. Um camarada definiu o meu livro como o livro de um militante com as paredes de vidro. Não é muito habitual as pessoas assumirem tão claramente as suas fraquezas.Nunca me foi difícil. Achei é que não havia interesse em falar disso antes publicamente, até porque podia ser utilizado contra nós. Se em 1994 tivesse escrito este livro não iria dizer isso. Porque sabia que isso iria ser utilizado perversamente. Agora já podem utilizar.Porque as suas responsabilidades políticas diminuíram?Olhe que não diminuíram, pois faço parte do comité central do PCP. Mas já se ultrapassou uma fase complicada no partido, em que houve gente que saiu, em que isto podia ser utilizado mesmo internamente se fosse público. Neste momento o partido está perfeitamente seguro, consolidado. E até pode ajudar, por mostrar que o partido é feito por homens que falham, que assumem que falham, que aceitam os falhanços dos outros porque também eles falham. Não somos gajos terríveis.A vitória na luta contra o cancroUma das suas lutas mais recentes foi contra o cancro. Em que medida é que esse episódio mudou a sua forma de estar na vida?Essa pergunta é complicada. É evidente que tudo o que nos acontece muda a maneira de estar na vida. Tudo! Mas há factos que são muito mais marcantes. Vermo-nos confrontados com um cancro é a prova daquilo que sabemos em teoria. Quando se sabe que temos uma doença que pode ser final perguntamos o que há a fazer. E só pode ser lutar contra isso. Não tivemos um segundo de hesitação. O gajo está cá? Então vamos dar cabo do gajo. E fomos capazes. Tivemos sorte. Encontrámos um médico excepcional e ainda por cima um camarada. Deu para tomar consciência, e bem a sério, das minhas limitações. Deu-me uma enorme satisfação ter vencido esta luta, com a certeza que não vou vencer todas. Há uma que me vai vencer a mim. A ideia da morte angustia-o?Essa situação deu-me uma grande serenidade, uma grande tranquilidade. O que temos a fazer é a todo o momento não desesperar, lutar. Mas a ideia da morte chateia-me à brava. Tem pena de não acreditar na vida eterna, como os cristãos e os fiéis de outras religiões?Não. A vida eterna foi inventada pelo medo da matéria ser finita. O Manuel da Fonseca tem uma frase, que não sei se chegou a escrevê-la, que era espectacular: a vida é uma coisa bestial, espantosa, acaba é mal. Teve uma vida cheia, como dirigente associativo, jornalista, escritor, professor, economista, preso político, eurodeputado…Atingi quase tudo o que queria. Só não consegui ser presidente da Câmara de Ourém. Os objectivos que tive, como ter uma carreira profissional séria, honesta, decente, respeitada, consegui. Consegui ser professor universitário, doutorei-me contra tudo e contra todos. Dentro do meu partido estou no comité central. Nunca quis ser secretário-geral. Dentro da carreira política estive no Parlamento Europeu, onde fui questor que é uma coisa extremamente importante. Estou satisfeito.Qual é a faceta por que gosta mais de ser conhecido?Não tenho preferência. O meu epitáfio poderia ser: “Sérgio Ribeiro, um gajo porreiro que faz cá falta”.“Ourém está entre duas cadeiras”Ourém é um dos seus amores.Ourém tem características muito particulares na organização do território. Como sabem Santarém não nos trata como sendo do seu distrito. Leiria quer servir-se de nós mas não nos trata como sendo seu. Estamos entre duas cadeiras e Ourém tem uma importância enorme do ponto de vista eleitoral. Porque são 50 mil habitantes. Ourém pode eleger dois deputados. E o PS e o PSD, que são partidos que fazem luta política exclusivamente pela via eleitoral, têm isso em conta e não têm o resto. Queremos que a luta política seja diferente, não é ver o cidadão apenas como eleitor. Ourém tem conseguido impor-se no panorama regional, pelo menos no que toca a cargos políticos. Os dois últimos governadores civis de Santarém eram do concelho. Há aí uma contradição entre o menos-prezo que do ponto de vista estrutural existe em relação ao concelho e ter governadores civis. É o peso eleitoral de Ourém que permite isso. E há também alguma dinâmica económica…Essa tem a ver sobretudo com a questão de Fátima. Que tem uma importância enorme neste concelho sob vários aspectos, designadamente o económico, mas não beneficiando Ourém. Poderia haver se tivéssemos uma estratégia concelhia. Se conseguíssemos que dos cinco ou seis milhões de visitantes anuais um por mil fizesse uma estadia curta, um fim-de-semana, no concelho que incluísse visitas aos castelos de Ourém e Tomar.Não sendo crente, como vê o fenómeno de Fátima?Vejo como uma construção perfeitamente artificial, uma coisa que foi sendo construída servindo interesses e ideologias que não são as minhas e que procuro combater de uma forma que é visível. O meu pai em 1917 vivia nesta casa, esteve em Outubro em Fátima e mais tarde ajudou-me a compreender o fenómeno. Que lhe disse o seu pai?O meu pai não acreditava e explicou-me porquê quando era miúdo. Disse-me para olhar fixamente para uma imagem durante um bocado e depois olhar para o sol. Fiz isso e a imagem que vi no céu era a que tinha acabado de fixar. Tudo aquilo que é apresentado como fenómeno sobrenatural tem uma explicação não sobrenatural.
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