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Uma vida dedicada ao vinho

Uma vida dedicada ao vinho

João Carvalho Ghira, natural do Cartaxo, é presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa

Nasceu no Cartaxo, rodeado de vinha, e é ao “néctar dos deuses” que tem dedicado a sua vida de trabalho. O engenheiro agrónomo João Carvalho Ghira, presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa, a residir em Torres Vedras, reconhece que a terra onde nasceu é “uma grande cidade do vinho”, mas está longe de ser a capital. “Ao elegê-la como capital do vinho estamos a marginalizar as outras”, defende o engenheiro agrónomo.

Nasceu no Cartaxo e é oriundo de uma família com forte ligação à agricultura.Sim. E não só do Ribatejo. A minha mãe era do Secorio, próximo de Santarém, e o meu avô lavrador. Amanhava uma área grande de cereal e tinha lagar de azeite e vinha. O meu pai é da zona de Torres Vedras. O meu trisavô dedicava-se à produção vitivinícola. Talvez isso explique porque despertou em mim este interesse. Durante toda a minha vida profissional estive ligado ao sector.E como é que a família chega ao Cartaxo?O meu pai não era agricultor. Estava ligado aos serviços hidráulicos. Foi para Santarém e conheceu a minha mãe. Durante uns tempos ficaram a viver na zona do Cartaxo, onde estavam quando nasci.Como foi a sua infância? Estivemos dois anos no casal onde nasci. Depois fomos viver para a então vila do Cartaxo, próximo da escola. Na Avenida João de Deus, onde morávamos, éramos três da mesma idade. O João António, eu e o Jorge. Entrámos para a escola no mesmo dia e éramos companheiros de brincadeira.E brincavam na rua?Na rua, no quintal e em casa. O Araújo, o pai do João António, gostava de fazer carros e no quintal tinha uma área reservada a parque infantil (risos). Tínhamos as brincadeiras da época e aprendíamos a andar de bicicleta. Havia sempre uma grande festa pelos santos populares. Fazia-se a fogueira. Lá vinham da charneca carroças de rosmaninho, alecrim e o indispensável balão que o pai do João António, o Araújo, era perito em fazer. A rua era ornamentada com as bandeirinhas de papel. Era uma das épocas do ano em que havia maior animação. A rapaziada divertia-se a saltar a fogueira. E por lá ficaram muito tempo?Até aos meus 10 anos. Era entendimento dos meus pais de que era mais fácil deslocar-se o meu pai do que eu para ir para o liceu Sá da Bandeira. Fomos morar para Santarém, cidade onde teria mais facilidade de prosseguir estudos. Arranjámos casa no lado oposto da cidade. Fazia o percurso a pé para o liceu. E que impressão ficou da cidade?Era diferente do Cartaxo, maior, mas rapidamente arranjei amigos que ainda hoje mantenho. Durante o percurso de quilómetro e meio entre a casa e o liceu íamos convivendo. É curioso que de dois em dois anos ainda nos juntamos no último sábado de Maio, em Santarém, para confraternizar.O liceu era uma referência em termos de ensino.Havia uma disciplina que está muito distante dos padrões actuais. Um dos aspectos mais notórios era a separação das meninas e dos rapazes. Existiam turmas mistas, mas era uma situação de excepção. Não sei se é positivo ou não, não sei, mas revela disciplina. Existia um respeito pelo professor que hoje não se verifica. E porque se perdeu essa disciplina?Julgo que terá havido um excesso de liberdade nos tempos mais recentes que levou à desautorização da figura do professor. E foram os professores que o aconselharam a seguir os estudos no Instituto Superior de Agronomia?Sim. Aluguei um quarto, em Lisboa, como a maior parte dos estudantes. Lá estive cinco anos. O estágio já o fiz próximo de Torres Vedras, na Estação Vitivinícola Nacional. Mas antes de acabar o curso ainda cumpri o serviço militar. Havia uma tradição dos alunos de Agronomia irem para a Marinha. Como soava que essa facilidade ia terminar, alistei-me antes que perdesse a oportunidade. Estive 21 meses na Guiné, comandante do navio de guerra “Aljezur”.E recebeu um louvor pelos serviços prestados. Apesar de alguma actividade desenvolvida não ser muito agradável, tentei cumprir o meu dever da melhor forma durante as acções de fiscalização e segurança. O navio foi atacado uma vez. Reagimos como pudemos. Tivemos algumas missões de risco, embora o apoio de fuzileiros e da força aérea tivessem garantido alguma segurança. A Guiné foi um dos locais mais perigosos e de maior instabilidade, mas passei lá bons momentos.Para alguns a experiência foi traumática.Apesar de ter tido situações críticas não sinto que me tenham afectado. Entendi sempre que estava a cumprir um dever.Já tinha namorada?Sim (risos).O que é sempre mais complicado.Não! Levei a namorada. Um dia jurei bandeira. Dois dias depois soube que ia para a Guiné. Sete dias depois casei. Isto quinze dias antes de ir para o Ultramar. Um mês e meio depois a minha mulher foi lá ter. A Marinha tinha vivendas para os oficiais, mas ficámos em casa de familiares. Ela foi leccionar. Costumo dizer que sofreu mais que eu. Em três ataques que houve a Bissau ela estava lá e eu fora. Num deles estava a uma distância que podia ver os rockets a cair, o que não dava muita segurança. Nem tudo foi mau. Comia-se bom marisco de Cabo Verde, ostras e havia festas. Um dia por semana fazia-se um grande jantar na messe de oficiais. Fizeram-se amigos. Depois instalámo-nos em Torres Vedras.E de vez em quando regressa à terra onde nasceu. Como olha para o Cartaxo de hoje?É bastante diferente do Cartaxo do meu tempo, mas vejo que tem havido um desenvolvimento, nomeadamente na área circundante. Várias pessoas se têm instalado beneficiando dos bons acessos. Pode descaracterizar um pouco, mas proporciona desenvolvimento. Para a actividade económica é importante. Está uma cidade onde é agradável viver e não perdeu o carácter de ruralidade.O estudante de engenharia que comandou um navio de guerra Nasceu a 25 de Abril de 1944, no Casal de S. João, a dois quilómetros do Cartaxo. A produção principal era a vinha, ambiente que o tem acompanhado ao longo da vida. A parteira da terra ajudou João Carvalho Ghira a vir ao mundo. “A minha mãe contou-me que vinha já um bocado roxo e tive que levar uns açoites, mas lá sobrevivi”, conta com humor o engenheiro de 65 anos, que reside em Torres Vedras. A mãe, antiga aluna do colégio Andaluz, em Santarém, era dona de casa. O pai fez carreira nos serviços hidráulicos na zona de Cartaxo, Santarém e Rio Maior. Ao filho único quiseram garantir todas as possibilidades de estudo. Os primeiros anos de escola foram feitos no Cartaxo, já a família morava no centro da então vila. Na altura o menino arrecadou o prémio “Os Viriatos” por ser o melhor aluno de História e a distinção Dr. Manuel Gomes pela melhor nota no conjunto de matérias dadas.Frequentou depois os bancos do liceu no Sá da Bandeira, em Santarém, ao lado do médico José Duarte Gonçalves e do advogado João Madeira Lopes. Os encontros de antigos alunos do liceu continuam a acontecer. À mesa de um restaurante vêem-se fotografias e contam-se histórias. Recordam-se tempos de juventude. “Estamos numa idade em que já há mais para recordar do que para viver”. Os estudos superiores no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, foram interrompidos, faltavam três cadeiras para o final, pela Guerra do Ultramar. Ingressou na Marinha para cumprir o serviço militar e a Guiné foi o destino que lhe coube. Foi comandar o navio Alzejur. Casou antes de rumar ao Ultramar e Conceição, a esposa, foi para junto do marido cerca de um mês depois. Um louvor do General Comandante-Chefe das Forças Armadas foi o reconhecimento por 21 meses de serviço prestado.O curso de engenharia foi concluído já na metrópole. O jovem agrónomo integrou em 1972 a Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, Torres Vedras, na altura Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas, onde a família continuou a residir. Tem dois filhos. Um é engenheiro de recursos hídricos, em Torres Vedras, outro engenheiro agrónomo, na Madeira, onde está também o neto, Bernardo, de dois anos e meio. Na quinta que possui nos arredores de Torres Vedras tem favas, tomates e feijão verde por sua conta. A salsa e os coentros também lhe ocupam o tempo. É um adepto de peixe. Gosta de assar sardinhas. A caldeirada é dos pratos preferidos quando acompanhada com um tinto mais aberto e ligeiro. Não recusa uma açorda, sável ou as enguias fritas, embora um bife lhe saiba sempre bem. Prefere bricolage e colecções a desporto. Vai fazendo o gosto ao dedo com a edição de obras como “Vinhos da Estremadura”, da sua autoria, da colecção enciclopédia dos vinhos de Portugal. Está aposentado da função pública e dentro de ano e meio o presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa (entidade criada em final de 2007 e que assumiu as funções da CVR Estremadura) quer passar a pasta.Foi um dos grandes responsáveis pela evolução qualitativa que o vinho português conheceu nas últimas três décadas Prestou assessoria técnica em diversos gabinetes de membros do Governo e desempenhou o cargo de presidente do Instituto da Vinha e do Vinho de 1987 a 1992. “Ao eleger o Cartaxo como a capital do vinho estamos a marginalizar as outras”Em que categoria coloca os vinhos do Ribatejo ou mesmo os do Cartaxo?De uma forma geral produz-se vinho de qualidade no nosso país. É evidente que cada região tem as suas particularidades. Não se pode dizer que um é melhor que outro. As características intrínsecas do vinho, que variam de região para região, conforme o sol, o clima e a tecnologia, podem ser aproveitadas na ligação que fazem com as refeições. Não podemos dizer que este vinho é melhor que aquele sem o adequar ao prato e ao momento. E o vinho do Ribatejo liga melhor com o quê?Com os sabores próprios da região. Os brancos acompanham peixes grelhados. Já há um vinho tinto é mais aberto para umas caldeiradas da borda de água e um vinho com mais corpo para as carnes bravas. O Ribatejo tem uma paleta de sabores e de pratos bastante variada. Até porque tem zonas que pelo tipo de solo diferenciam os vinhos. Os do bairro e da charneca não têm nada a ver com os brancos de grande qualidade da lezíria. E o Ribatejo aposta nas devidas castas?Vão-se mantendo algumas castas tradicionais, mas tem-se introduzido muitas estrangeiras. E isso é positivo?É uma faca de dois gumes. Se por um lado leva à perda de castas de grande potencial enológico, por outro é importante para a conquista de mercados. Faz sentido que o Cartaxo reclame o título de Capital do Vinho?Faz sentido que seja uma grande cidade do vinho...Não a capital?Estamos num país em que existem vinhos que não podem de forma alguma ser marginalizados. Para mim seria um bocado difícil – sem deixar de ter apreço pelo vinho do Cartaxo – deixar de ter consideração pelo vinho do Porto, por exemplo. Ao nível da imagem que um país passa para o estrangeiro é difícil dizer que seja a capital. É uma grande cidade do vinho. Tem uma tradição, uma produção e ultimamente uma actividade de índole sociocultural que lhe dá um estatuto de mérito. Ao elegê-la como capital do vinho estamos a marginalizar as outras. Não podemos deixar de ter presente que há outras que têm também uma importância notória.O Cartaxo foi sempre associado ao vinho, mas também ao carrascão. Porque é que esta noção demorou tanto a ser erradicada?Nos últimos 20 ou 30 anos registou-se um surto qualitativo. Esse vinho carrascão, de maior intensidade corante e alcoólica, que tinha e ainda tem apreciadores, é feito com uma tecnologia diferente e que teve a sua época. Os hábitos alimentares também se alteraram. Há 30 anos o consumo per capita era superior a cem litros e hoje nem aos cinquenta chega. Houve uma redução considerável do consumo, mas em contrapartida a qualidade aumentou. As pessoas são muito mais exigentes. Sabem adequar melhor o vinho ao prato. Que opinião tem sobre a nova marca Tejo?Os produtores optaram por alterar e têm as suas razões válidas. Temos grandes regiões vitivinícolas com nomes de rios. Porque não o Tejo? Embora o Tejo percorra mais zonas, quer em Espanha quer em Portugal, mas não há dúvidas de que grande parte do Tejo se estende ao longo da zona vitivinícola do Ribatejo. Admito que a marca “Ribatejo” talvez fosse mais abrangente e vantajosa, mas é a opinião de quem está fora do processo produtivo da região. Os vinhos da Estremadura estão agora na Comissão Vitivinícola de Lisboa. Foi opinião dos agentes económicos que Lisboa poderia trazer grandes vantagens, nomeadamente na facilidade de comercialização, conhecimento do nome, muito em particular para o mercado externo. Lisboa é facilmente localizável, pronunciável e não se confunde com a Estremadura espanhola. De que precisa o vinho do Ribatejo para prosseguir no caminho da qualidade?Hoje em dia há muitas marcas no mercado e é difícil fazer a promoção de todas. Até porque o número de consumidores tem reduzido. Aumentar as vendas é um processo complicado que assenta sobretudo no marketing e na promoção. Mas há dispositivos que têm sido postos à disposição. A própria Viniportugal promove o vinho português. Se falha a promoção e se esse é o papel da Viniportugal, que é apoiada pelo Estado, para esse efeito o que tem corrido mal?Não sei se tem corrido mal. A Viniportugal, criada há 12 anos, tem tido um papel muito positivo. Tem havido uma maior divulgação e maior facilidade de participação dos agentes económicos em eventos internacionais. É evidente que o produtor também tem que apresentar vinhos qualidade. A Viniportugal não pode pegar os produtores ao colo. O papel da Viniportugal, como das comissões vitivinícolas, não é angariar compradores para o vinho desta ou daquela gente. O agente económico é que tem que participar activamente. Às vezes ficam à espera que vão lá à porta comprar o vinho. É um mau caminho. Como se faz noutros países...Em Portugal as rotas do vinho não estão a funcionar como em outros países, mas isso também passará pela maneira de actuar de cada um. Hoje em dia quem quer consumir encontra nas grandes superfícies vinho de boa qualidade a preços muito acessíveis. Até porque quem vai à porta do produtor corre o risco de comprar gato por lebre. Gato por lebre no sentido em que não há uma marca?Exactamente. Às vezes nem garantia de que a produção é do próprio…Mas no restaurante o preço não é tão acessível. Isso é que é um problema!Porque não está mais implementada a ideia do vinho a copo?Tem vindo a aumentar, embora mesmo assim o vinho seja demasiado caro. É claro que tem que haver garantia de que é de uma garrafa da marca que foi aberta há pouco tempo e está em boas condições. Mas acho que os restaurantes adoptam uma política de preços muito elevada. A margem é demasiado grande.O restaurante para ter a porta aberta tem uma série de encargos, mas daí até aumentar cinco ou seis vezes o preço do vinho é um exagero. A cerveja ou os refrigerantes têm preços muito menos pesados do que aqueles que a restauração aplica ao vinho. Ao nível da restauração o preço devia ser revisto, tal como o fomento dos vinhos da região. Se vou ao Cartaxo não faz sentido que o restaurante me sugira um vinho do Alentejo. E isso acontece?Com muita frequência. É evidente que deve ter de outras regiões, mas deve também promover o da terra. Há vinhos da região que dão resposta a qualquer tipo de refeição. Devia ser um dos papéis da restauração.É possível o equilíbrio quando se fala de vinho e segurança rodoviária?Com bom senso, como em tudo na vida. O consumo em grandes quantidades tira qualidade ao vinho. Em nenhuma circunstância - vá ou não conduzir – deve abusar. De outra forma não se consegue apreciar independentemente das consequências que possam dai advir pelo teor em álcool que se tem no sangue. O número de mortes na estrada é uma situação delicada. É preciso mais consciência. Não só em relação ao álcool, mas à velocidade e às manobras perigosas.
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