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Um tenor em busca das mil faces da ópera

Um tenor em busca das mil faces da ópera

Os caminhos de Samuel Vieira entre o Cartaxo, Tomar, Lisboa e o mundo

Neto e bisneto de músicos, deu os primeiros passos como instrumentista em Vale da Pinta, concelho do Cartaxo. Depois, os conservatórios de Tomar e Lisboa deram ao tenor, que já integrou o Coro do Teatro de São Carlos, a voz que hoje o distingue. No dia 10, estreia na Figueira da Foz a ópera Madame Butterfly, em que Samuel Vieira interpreta o papel de vilão.

Chega ao final do dia à entrada do antigo cinema “Europa”, em Lisboa, para mais um ensaio de “Madame Butterfly”, ópera de Puccini que estreia dia 10 no Centro de Artes Espectáculos da Figueira da Foz. Samuel Vieira, tenor ligeiro, natural de Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, é um dos cantores que vão dar vida às personagens europeias e japonesas da composição lírica, numa estreia da Companhia Portuguesa de Ópera. Na bagagem, o tenor de 33 anos traz a experiência de vários anos ao serviço do Teatro de São Carlos, o gosto pela recuperação de óperas já esquecidas e um percurso entre o Cartaxo, Tomar e Lisboa, com passagens por Itália. Neto e bisneto de músicos, Samuel Vieira iniciou-se nas lides musicais como clarinetista, na Filarmónica de Vale da Pinta. A partir dos 13 anos passou também a ter aulas de piano e aos 17 entrava no conservatório, em Tomar. “A música sempre esteve presente no ambiente em que cresci e isso pode ter influenciado o meu percurso”, conta. Ainda no conservatório, o então aluno comprou um livro de árias para barítono (o cantor lírico com a voz mais grave) e escolheu duas para interpretar, cantando numa audição de Carnaval. A apresentação de “Figaro”, ária da ópera “O Barbeiro de Sevilha”, de Rossini, contou com a ajuda do professor de piano e acabaria por marcar o destino de Samuel Vieira. “Um dia, acompanhei uma amiga que ia ingressar no Conservatório de Lisboa e mostraram interesse em que fizesse provas. Passei e acabei por entrar no curso de canto”. Nessa altura já estava decidido e a mensagem para os professores era clara. “Quero fazer do canto a minha profissão”, disse à época o tenor. Em Lisboa, começaram as actuações em público a um nível profissional. Como muitos cantores da sua geração, o tenor ouviu os seus primeiros aplausos em actuações no restaurante Biancafiore, onde habitualmente cantavam jovens talentos do canto lírico. E no final do curso seguiu-se o ingresso no coro do Teatro Nacional de São Carlos. Mas o país era pequeno para a grande companhia e cedo Samuel Vieira tomou contacto com a realidade internacional, durante um mês de actuações da companhia em Génova, Itália. Seguiram-se aulas com um professor italiano e várias colaborações com a Companhia Portuguesa de Ópera, em paralelo, que viriam a tornar-se mais regulares com o tempo. “Comecei como coralista, e depois passei a interpretar papéis de carácter, em que há uma grande parte de representação” relata Samuel Vieira, O mais recente papel que interpreta, na ópera “Madame Butterfly”, é o de Goro, um japonês ocidentalizado que faz a “ponte” na peça entre os mundos ocidental e oriental e tem como profissão a venda de mulheres. “É o segundo papel de vilão que interpreto”, conta a O MIRANTE. Defensor da “democratização da ópera”, Samuel Vieira garante aos mais cépticos que os espectáculos líricos podem chegar mais perto das pessoas, fora das grandes metrópoles. “A ópera pode ser interpretada tanto num teatro barroco como num auditório ou num espaço ao ar livre”, garante, desde que adaptadas as condições acústicas. E dá exemplos de espaços que vê com bons olhos para espectáculos do género: o mini teatro de Salvaterra de Magos e o Palácio Nacional de Queluz – o primeiro em pequena escala e o segundo, com salões de grande dimensão, sem palco. O gosto pela música, considera, deve ser estimulado desde tenra idade. “O Homem perfeito deve ser sensível a todos os tipos de música”, aponta como aspiração. E sobre a música lírica, lembra: “Há cem anos, as pessoas corriam para as casas de ópera como hoje correm para os estádios de futebol”. E evoca a influência daquele canto nas tradições musicais actuais. “O canto lírico é realizado através de uma colocação superior da voz. Em algum folclore essa colocação também se verifica porque transitou. O contacto que as pessoas tinham com a música passava muito pela igreja, e essa era a educação musical que procuravam reproduzir no seu dia-a-dia, tanto nas canções de trabalho como religiosas”, nota. Com um olhar crítico sobre o sector da cultura em Portugal, Samuel Vieira toma parte activa na produção musical e na recuperação de música lírica (ver caixa). O papel estatal, refere, “é importante, mas tanto a iniciativa privada como o Estado têm de estimular a cultura”. E refere o exemplo dos privados na mais importante sala de ópera do mundo – o Metropolitan, em Nova Iorque nos Estados Unidos. “São privados que financiam, porque naquele país o apoio às actividades culturais confere reais deduções nos impostos”. Em Portugal, refere, começam a ser dados alguns passos.Neto e bisneto de músicos, Samuel Vieira iniciou-se nas lides musicais como clarinetista, na Filarmónica de Vale da Pinta. A partir dos 13 anos passou também a ter aulas de piano e aos 17 entrava no conservatório, em Tomar. “A música sempre esteve presente no ambiente em que cresci e isso pode ter influenciado o meu percurso”.Recuperar as árias que fizeram história Samuel Vieira desenvolve, em paralelo com o trabalho na Companhia de Ópera Portuguesa, uma investigação sobre árias portuguesas e italianas do século XVII, com vista à sua recuperação. O resultado é a produção de concertos, em nome próprio, com material que fez sucesso nas noites dos antigos teatros do Salitre, Condes e no São Carlos. Das missas, passando pelos concertos, teatro de corte e pela oratória, são vários os tipos de peça que passam pelas mãos e voz do cantor. Sobre a produção, o tenor adianta que é “mais árdua do que o trabalho do canto”. Os métodos de diferentes cantores e a suas exigências obrigam o tenor, enquanto produtor, a um esforço a que não está habituado. “Os cantores gostam de ver todos os caprichos e desejos. Há um trabalho mais burocrático e outro de que gosto mais, criativo”, revela. A gravação em disco das músicas que tem vindo a apresentar nos espectáculos poderá ser um passo futuro, admite o tenor.O encanto da rádioO gosto pela ópera do tenor chegou também ao éter. Samuel Vieira comenta na Antena 2 as transmissões de ópera realizadas pela rádio pública no país e no estrangeiro. As óperas das salas Metropolitan, nos Estados Unidos, e no Teatro Scala, em Milão, Itália, são algumas das mais frequentes. A actividade permite-lhe “falar um pouco daquilo que gosto e cruzar conhecimentos e expressar a minha visão sobre a ópera contemporânea”, explica a O MIRANTE. Tudo começou, em 2004, com um convite para aquando de um convite para comentar a ópera Europa Riconosciuta”, de António Salieri”. “Não havia ninguém que estivesse à vontade naquela ópera e depois fui sendo convidado a colaborar em mais transmissões”, conta. Um artista que não esquece as raízesQuando, aos 12 anos, Samuel Vieira seguiu as pisadas da irmã para ingressar na banda filarmónica da Sociedade Cultural e Recreativa de Vale da Pinta, poucos adivinhavam onde chegaria o jovem que, fascinado pela música do piano, abraçava a aprendizagem do clarinete naquela localidade do concelho do Cartaxo. As pisadas do jovem, aos 9 anos, iam no sentido das de Abílio de Oliveira Isidoro, bisavô do músico, distinguido postumamente por nunca ter faltado a um ensaio, desde 1920 até 1968. Da terra onde cresceu, Samuel Vieira guarda “uma grande carga afectiva”. E garante: “É o meu espaço”. Já no Cartaxo, como aluno do antigo ensino preparatório, descobriu apoios no caminho da música pelo entusiasmo transmitido por uma professora da disciplina de educação musical, face às suas perguntas e ao facto de se ter iniciado como músico. As raízes ribatejanas deixaram também no cantor o gosto pela festa brava. Apesar de não “correr para os espectáculos tauromáquicos”, o tenor é sensível à aficcion e no último sábado, a caminho de casa, não hesitou em parar em Vila Franca de Xira e observar a alargada de touros que ali se desenrolava por ocasião da Feira de Outubro. “A gastronomia e os vinhos ribatejanos também fazem parte dos meus gostos”, confessa. Conhecedor do Ribatejo, sentiu-se em casa aquando da sua passagem pelo Conservatório de Tomar, cidade onde tem familiares. “Conhecia bem os espaços e para ir para o conservatório atravessava muitas vezes a cidade a pé, desde a estação de caminho de ferro até ao conservatório”, conta. Os cantos e recantos onde a História espreita são, para o tenor, velhos conhecidos. Entre as viagens pelas terras em que foi criado, Samuel Vieira destaca também a ida à Feira do Cavalo na Golegã como uma actividade merecedora de “um passeio mais demorado”. As procissões, a que assistiu com frequência na infância, fruto de uma educação religiosa, estão também entre os fenómenos culturais que ligam o tenor à sua terra natal. Apesar de preferir a música erudita acima de todos os géneros, Samuel Vieira manifesta ser “sensível a todos os tipos de manifestação musical e cultural”. Por isso, numa ida à discoteca, a música electrónica é encarada como uma experiência agradável. A música popular e mesmo o folclore, nas festas da sua terra, são olhadas “com curiosidade”.
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