CSI Portugal: algures entre a realidade e a ficção
Carlos Farinha, natural de Tomar, é o director do Laboratório Nacional de Polícia Científica
As séries americanas ofereceram ao público anónimo uma imagem sedutora dos bastidores da investigação criminal. Na vida real os agentes também utilizam sacos de plástico para recolher vestígios, óculos e luvas especiais, mas usam menos maquilhagem e não conseguem respostas à velocidade da luz. Carlos Farinha, um tomarense a viver na capital, que dirige o Laboratório Nacional de Polícia Científica há sete meses, explica o que é trabalhar numa espécie de CSI português. Ana Santiago
Um fio de cabelo no local do crime. E à distancia de um clique - mais do que a identificação do suspeito com base no perfil de DNA - surge a informação precisa sobre os empregos que teve, contas bancárias, veículos e moradas. Qualquer semelhança entre esta ficção e a realidade é coincidência - ao mais puro estilo de um episódio da famosa série policial americana CSI - mas nem só de utopias vivem as séries televisivas que tocam em alguns pontos a realidade. Quem o garante é o director do Laboratório Nacional de Polícia Científica, uma estrutura da Polícia Judiciária que tem à frente desde Abril um operacional nascido em Tomar. “Para que tudo isto fosse real o que teríamos que ter em termos de base de dados e de tratamento de informação seria absolutamente insuportável. Não seria apenas necessário um big brother, mas um big, big, big brother. E não haveria equilíbrio nenhum entre a liberdade, a segurança e a justiça”, explica Carlos Farinha.CSI (Crime Scene Investigation), o título da série, pode ser sinónimo de Crime Sob investigação. E nessa perspectiva existe um CSI em Portugal. O laboratório é a melhor representação real desta ficção. A sede é na Rua Gomes Freire, em Lisboa, mas existem delegações em todo o paísÉ o laboratório, com várias especialidades forenses, que tem a responsabilidade da recolha dos vestígios dos crimes em toda a área reservada da competência da Polícia Judiciária. O mesmo é dizer que lida com os crimes mais complexos, mais graves e organizados.A tecnologia evoluiu muito nos últimos anos, embora não tanto quanto passa no pequeno ecrã. Com base nos marcadores de identificação genética é possível confirmar a identidade de uma pessoa. O perfil genético pode ser extraído com base num cabelo com raiz, sudação ou qualquer líquido orgânico ou mancha hemática. “Antigamente tínhamos sangue e conseguíamos saber se era humano ou não humano. Às vezes conseguia-se a tipagem e o grupo. Ficávamos então com a certeza de que seria uma das pessoas que perfazem 44 por centro da população”, diz com ironia. As análises de DNA, que demoram não menos de 20 horas a fazer, só se justificam em determinado tipo de crimes, defende. As bases de dados não existem à medida dos filmes, mas no domínio das impressões digitais já estão reunidos milhares de padrões de referência. Existem outras bases de dados relativamente a rodados de pneus, rastos de calçado e espécimes de documentos. A série de televisão que trouxe à ribalta o tema da investigação policial deu mais prestígio à classe, mas também tornou a profissão mais exigente. O lado mau? Perde-se a percepção da morosidade das coisas, responde Carlos Farinha. “O laboratório não está à espera que chegue uma análise de manhã para entregar da parte da tarde”. Durante o ano de 2008 chegaram ao laboratório 24 mil solicitações para os mais variados exames a nível nacional. Este ano já se atingiu 28 mil e a tendência é crescente. No último mês entraram no laboratório 2700 pedidos de vários exames, mais de 200 por dia útil.A ficção possibilitou nos últimos anos uma maior sensibilidade para o acautelamento e preservação dos vestígios, mesmo que no diz respeito à área da PSP e GNR que pode fazê-lo no âmbito das suas competências. “Hoje em dia quando se coloca uma linha para não atravessar as pessoas percebem que não devem atravessar. E desde logo as entidades policiais que primeiro abordam o local percebem que devem fazer essa interdição de zona”. O aumento de recolha de vestígios vai obrigar a um aumento de resposta analítica. Mas não é por acaso que o laboratório vai ser alargado e passar para uma área quatro vezes maior. Os intérpretes da série televisiva – gente muito bem vestida e muito bem apresentada - passam a imagem de um trabalho limpo e atraente. Carlos farinha não desmente. “Mas é também um trabalho com morosidade, cansaço, limitações de recursos e de natureza legal”. Os filmes, não deixando de ser filmes, obedecem a alguns dos princípios técnicos da realidade. “Não são ficção científica”, ressalva. A forma de preservar determinado tipo de local, de recolher materiais e vestígios e a preocupação de os manter livres de contaminações são comuns. “Hoje, em Portugal, em qualquer abordagem no local, os nossos peritos equipam-se com fatos apropriados, óculos e luvas. Utilizam instrumentos que depois têm que ser esterilizados ou descartados. Costumo dizer a brincar que, infelizmente, não somos tão bonitos como eles”.Da figura do inspector solitário à equipa multidisciplinarHouve um tempo em que as séries policiais falavam num inspector, num comissário ou num detective, mas actualmente as produções televisivas trazem à luz do dia equipas multidisciplinares, o que na opinião de Carlos Farinha possibilita uma lógica mais rica. “Aquela imagem, novelesca, do investigador sozinho no recanto da sua vida a reflectir e a chegar sozinho a conclusões, não nos pode afastar do empenho intelectual que as pessoas têm que ter, mas também não deve afastar da necessidade que estas coisas têm de ser cruzadas”, alerta.A actividade de investigação é sempre uma forma de combinar o racional com o emocional. E por isso a observação deve estar atribuída a uma equipa. “Fazemos perícias sempre com dois elementos e em alguns casos com um validador. É o eu confrontar-me com a ciência do meu colega”.O processo penal sempre se escorou muito na prova pessoal e muito pouco na prova real. Mas cada vez mais a justiça precisa de referências de rigor. “A decisão do magistrado não se escora exclusivamente no resultado da perícia, mas é ajudada pelo resultado da perícia”, diz Carlos Farinha lembrando que a “ciência forense não serve apenas para colocar as pessoas atrás das grades, mas para esclarecer”.A prova real não retira o lado humano da aplicação da justiça que tem que estar sempre presente. “A justiça não é aplicada por um computador, mas por pessoas que avaliam condutas”. O ‘gang das cuequinhas’ actuava em Vila Franca de XiraO caso era referido na literatura policial, mas difícil de encontrar na vida real. Um grupo de pessoas que fazia assaltos com componente sexual foi detectado na zona de Vila Franca de Xira. Estava então Carlos Farinha à frente da directoria de Lisboa, departamento que dirigiu entre 2004 e 2006. “Assaltavam casais. Normalmente tinham trato sexual com o elemento feminino do casal mas mesmo sem ter coleccionavam peças íntimas de roupa das vítimas femininas”, recorda.A situação foi considerada caso de estudo. “É referido na literatura como uma forma de compensação, de transformar em utilitário um crime maligno. Vão à procura de uma compensação além da compensação material”, analisa.Na posse do líder do grupo foram encontradas duas ou três dezenas de peças de roupa íntima o que pressupunha “um desvio comportamental além da própria ilicitude já de si desviante da conduta”.Nem sempre havia violação. Havia sobretudo um trato de humilhação sexual. “Nesta temática da criminalidade sexual nem sempre o acto como nós concebemos é o fim em si mesmo. Há formas subliminares, ainda mais proibidas, que vão para além da prática do acto contra a vontade”.O autor sente-se gratificado por humilhar numa perspectiva sexual a vítima o que não significa sujeitá-la a um acto sexual tradicional, explica. Pode obrigá-la a despir-se ou a ter um acto sexual com o parceiro. Em determinados casos há quem leve pequenos objectivos como troféu, como porta-chaves, prova do seu domínio.A história de um bebé resgatado a um contentor do lixo em TomarA rapariga deu entrada no hospital com sintomas de um parto recente, mas o alto nível de perturbação em que estava não lhe permitiu dizer o que se passou. Alguém pediu o apoio da Polícia Judiciária. Dois operacionais falaram com a jovem e conseguiram o nome de uma aldeia nos arredores de Tomar e a informação de que o bebé tinha sido deixado num contentor de lixo ainda com vida. “A rapariga dizia: ‘eu não o matei”, descreve Carlos Farinha.A primeira preocupação foi procurar o corpo. “As pessoas começaram a dirigir-se ao local e quando meteram as mãos no contentor para ver o que lá estava ouviu-se um choro. A criança estava viva e foi possível face a isto dar-lhe assistência hospitalar e a criança, para gáudio da própria mãe que acabou por arrepender-se, subreviveu”.Tudo aconteceu no início da década de 90. “Não tenho nenhum relacionamento com o caso”, garante Carlos Farinha. “Mas por isto valeu a existência da Polícia Judiciária”.Casos de sucessoO trabalho do Laboratório Nacional de Polícia Científica – que fez o primeiro exame há quase cinquenta anos - é determinante para desvendar crimes, como o da mulher da alta sociedade que matou o marido (através da análise por comparação dos atilhos usados na vítima) ou o do cabo da GNR acusado de matar três jovens. No segundo caso vestígios de natureza biológica que correspondiam às vítimas estavam onde não podiam estar. “Uns pós de sacos de cimento foram também detectados e correspondiam à zona onde tinha sido encontrada parte de uma das vítimas. É um caso paradigmático de bom resultado”, explica Carlos Farinha.O laboratório trabalha em articulação com a medicina legal. Os exames feitos nas pessoas escapam à sua competência. “Se tivermos uma vítima de violação não podemos examinar a vítima, mas podemos examinar a roupa dela. Todos os procedimentos que ponham em causa o pudor e a privacidade da pessoa são actos médicos que devem ser realizados pela medicina legal”.O laboratório funciona com 230 pessoas a nível nacional, das quais 160 trabalham em Lisboa. Os exames mais atrasados são os de balística, biologia e escrita manual. As análises de documentos, papel-moeda, moeda metálica, toxicologia, química, máquinas, marcas e criminalística decorrem a ritmo mais rápido. Um crime nunca se apagaUm dia, ainda trabalhava no Funchal, uma zona ligada à criminalidade sexual, Carlos Farinha recebeu uma carta da filha de um homem detido pela polícia. “A menina dizia uma coisa tão simples e tão forte quanto isto: ‘antes queria que nada tivesse acontecido. O meu pai está preso, a minha mãe chora’. Oscilava entre o sentimento de vítima e sentimento de culpa de que o pai tivesse sido sancionado”, interpreta.É a prova de que mais vale a pena prevenir do que remediar. “Mesmo quando esclarecemos um homicídio não fazemos o tempo andar para trás. Não damos vida a quem morreu, às vezes recuperamos os bens de quem foi subtraído dos mesmos, mas não lhe tiramos o desconforto e num crime sexual não fazemos da pessoa não vítima”, lamenta Carlos Farinha defensor da objectividade e isenção. “Não deixamos de ser pessoas, mas às vezes para ver de mais perto precisamos de dar um passo atrás”.Há alturas em que o polícia – hoje num emprego de ‘ar condicionado’ como faz questão de frisar - se sente posto à prova. No limiar da resistência física, intelectual, mas tem conseguido vencer o desafio. De uma coisa tem a certeza, daqui a uns anos, quando arrumar as botas, vai sentir “gratificação pelas vivências humanas”.O polícia de base que subia às nespereiras e andava de barco no mouchãoO telemóvel toca quatro vezes durante a entrevista. Uma frequência relativamente tranquila garante Carlos Farinha a avaliar pelo número de chamadas que recebe diariamente. O sol começa a pôr-se no gabinete do director do Laboratório Nacional de Polícia Científica da Polícia Judiciária, na Gomes Freire, em Lisboa, que desde Abril é ocupado por um polícia de base.Já leva 28 anos de carreira na PJ. Nasceu em Tomar, mas já trabalhou em Coimbra, no Funchal e em Leiria a chefiar vários departamentos. Há sete meses voltou à capital – onde já esteve entre 2004 e 2006 como responsável da directoria de Lisboa (Acompanhou na saída Santos Cabral, então director nacional da Polícia Judiciária). O valor da lealdade é inatacável, garante.É licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra. Tem um discurso fluente, comedido, estruturado. À prova de laboratório. A fotografia das duas filhas está ao lado do computador. Admite que a balança privilegia actualmente o lado profissional em detrimento do pessoal. Passa entre 12 a 14 horas por dia no laboratório.Viveu os primeiros 20 anos em Tomar de onde só saiu para cumprir o serviço militar na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, como polícia do exército. Curiosamente nunca pensou ser polícia. Respondeu a um anúncio de jornal. A seguir a Santarém rumou a Coimbra onde constitui família. Regressa a Tomar com frequência para visitar familiares e as pedras com memória. “Pedras que me dizem alguma coisa sobre momentos importantes da minha vida”.Nadou no rio, na piscina Vasco Jacob, jogou basquet, ténis de mesa e futebol no União de Tomar. Nas férias chegou a trabalhar no Hotel dos Templários. “Abria portas às pessoas que chegavam e a indicar-lhes onde era o quarto. Aquilo que se pode fazer aos 13 ou 14 anos”. Ajudou nas decorações das festas dos tabuleiros e trabalhou numa serração a pregar caixotes para a fruta com três tábuas de cada lado. Sempre em períodos de férias para não prejudicar a escola. Frequentou a escola que é hoje a Jacome Raton. Jogou basquetebol na Académica, em Coimbra, onde foi treinador.Os pais radicaram-se em Tomar, no final dos anos 50, pouco antes de ter nascido o terceiro de quatro irmãos, em Dezembro de 1958. O pai trabalhava no tribunal do trabalho.Carlos Farinha reconhece o trabalho gratuito e invisível do associativismo que permite que exista um Sporting de Tomar ou um União de Tomar e lembra os homens com quem aprendeu, desde cedo, que é importante ganhar mas não a qualquer custo. Mais recentemente viveu com curiosidade a candidatura de independentes em Tomar encabeçada por Pedro Marques, camarada de escola com quem partilhou as aventuras de pintar os muros do estabelecimento de ensino no calor da revolução. Perspectiva uma retribuição à terra onde passou os primeiros vinte anos. “Não estou à espera de voltar a subir às árvores, apanhar nêsperas e voltar a andar nos barcos do mouchão. Mas se esse ciclo se fechar a vida é mais justificada. Cumpre-se um dever de cidadania”.
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