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Um natal, qualquer natal

Um natal, qualquer natal

Num dos seus poemas Fernando Pessoa diz-nos que todas as cartas de amor são ridículas, e se não fossem ridículas não eram cartas de amor. Posso transferir esta ideia para o espírito de Natal e dizer, evocando Pessoa, que todos os Natais são ridículos, mas se não fossem ridículos deixariam de ser aquilo que são. Uma onda crescente de expectativas afectivas que culmina numa noite de encontros com gente de quem gostamos e pratos ritualísticos, tão vulgares quanto um bacalhau, mas que naquela mesa ganham uma carga simbólica que se desvanece no instante em que se consome. Dezembro é ridículo pois caminha inexoravelmente entre desejos de boas festas para uma apoteose que se desvanece numa noite. O que significará isso? Boas Festas? Haverá festas más? Que queremos dizer quando desejamos um Natal feliz. É certo que estamos a dizer que não queremos que seja infeliz. Mas porquê só o Natal? E porque não repetimos todos os dias, todas as semanas os mesmos desejos de felicidade àqueles que cumprimentamos?E agora, que a secularização da família foi, aos poucos, dissolvendo a importância da missa do galo e dos presépios; agora que se multiplicam exércitos de desempregados, a quem emprestam fatiota de Pai Natal, e por alguns trocos oferecem seduções, telemóveis com 20% de desconto, televisões digitais a preços imbatíveis, viagens a Varadero a preços da alface, cartões de crédito com vantagens de excepção, uma delas até oferece uma varinha eléctrica!; agora que estamos aqui, convertido esse espírito que interpelava a paz, numa audácia que convida ao consumo desenfreado, ao endividamento, mas oferece prazer, é verdade que efémero, o que significa Feliz Natal? Uma viagem a Cancún? Mais dez jogos de ‘playstation’? Meia dúzia de insignificâncias elevadas à sacralidade de uma jóia eterna?Se calhar começa a ser ridículo desejar paz, muita paz, cada vez mais paz, e outra vezes recordando Pessoa, a ‘paz dos cemitérios’ e, durante os outros meses do ano, mandar às urtigas todos os sonhos românticos jurados, desejados durante estes parcos dias de Dezembro para tornar ao cinismo, ao egoísmo, a todas as formas de não viver com esse sorriso com que se deseja ‘Feliz Natal’. Neste psicodrama de encenações voláteis, prefiro o ridículo ao cínico, a intenção de acreditar que as Festas são boas, ainda que esvaídas no ápice da dentada de bacalhau ou de qualquer prato de sonhos servido com muito açúcar. E regresso às origens do meu presépio de menino, feito com musgo, feito com bonecos que imaginávamos vivos, tão vivos que o Natal surgia pela chaminé, directo ao sapatinho, trazido pelo Menino Jesus. Gosto de voltar a ser ridículo, acreditando que o Natal se multiplica, embora saiba que esta multiplicação é ridícula. Gosto de imaginar que os putos de Santarém, os putos do nosso país, os putos do mundo inteiro, estão inteiros e intensos, nesse desejo de Paz sem paz. Da Paz que interpela a vida e nos devolve a afeição, a fraternidade, o amor pelos outros. É verdade. O Natal tem de ser ridículo, e se não o for, não é Natal. Mas é melhor assim. Pelo menos há um dia, uma hora que seja desse dia, em que acreditamos que tudo pode ser um grande e forte abraço comovido que nos envolve docemente, quentinhos, como se regressássemos ao colo da mãe. Das nossas mães. Um Natal Feliz! Um ano de 2010 que repita muitos dias de Natal. Mesmo que seja ridículo, acreditem, vale a pena acreditar que dizer ‘amo-te’ meu irmão, minha amiga, meu companheiro é muito menos ridículo do que a farsa com que enroupamos os dias em que não nos consideramos ridículos.* Presidente da Câmara Municipal de SantarémVale a pena acreditar que dizer ‘amo-te’ meu irmão, minha amiga, meu companheiro é muito menos ridículo do que a farsa com que enroupamos os dias em que não nos consideramos ridículos
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