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“Ia para os bailes com a farda de cobrador e até parecia um piloto da Força Aérea”

“Ia para os bailes com a farda de cobrador e até parecia um piloto da Força Aérea”

Artur Colaço Santos é o chefe da estação da Rodoviária do Tejo de Rio Maior e o mais antigo funcionário de camionagem na região

Entrou para a empresa de transportes Capristanos aos 23 anos. E acompanhou toda a evolução que se seguiu nos transportes rodoviários até hoje: a compra da empresa pelos Claras, a passagem a Rodoviária Nacional com a nacionalização a seguir ao 25 de Abril e a privatização que deu origem à Rodoviária do Tejo. Reformou-se mas voltou ao activo e dirige a estação de Rio Maior. A poucos meses de completar 79 anos, Artur Colaço dos Santos tem muitas histórias para contar.

É o trabalhador mais antigo da rodoviária. É preciso uma grande paixão para estar tantos anos dedicado a esta actividade.Comecei a trabalhar no campo por volta dos dez anos. Naquela altura os trabalhos agrícolas eram muito violentos. Quando via passar uma camioneta da carreira desligava do trabalho. Apoiava-me no cabo da enxada e ficava a ver passar os autocarros dos Capristanos. O que eu adorava as camionetas. Era uma loucura. Como é que conseguiu concretizar esse sonho?Comecei a pensar qual seria a maneira de conseguir ir trabalhar para os transportes de passageiros, porque sempre gostei de lidar com o público. Naquela altura não deve ter sido fácil…Lembrei-me de ir falar com um vizinho que tinha um amigo que por sua vez era muito amigo do José Capristano. Fui com ele falar com esse tal amigo, João Correia, pedimos-lhe o favor. E passado algum tempo chamaram-me para a empresa, tinha 23 anos. Já nessa altura funcionavam as cunhas.Naquela altura arranjar um emprego que não fosse no campo era muito mais difícil do que é hoje. Além de trabalhar no campo também tinha que trabalhar nas salinas de Rio Maior. Era uma época de muitas necessidades e tínhamos que nos valer dos conhecimentos. Ainda se lembra como foram os primeiros tempos?Como gostava muito desta actividade e tinha muito gosto em lidar com as pessoas, costumava ajudar principalmente as pessoas mais velhas a subir e a descer das camionetas, a arrumar as bagagens, e por causa disso criei muitas simpatias com os passageiros. Às vezes ouvia as mulheres a comentarem umas com as outras dentro do autocarro que eu era muito educado, que era muito bom rapaz. Aí ainda ficava mais vaidoso. Sempre gostou do que fazia?Alguns vão para os empregos só para ganhar o dinheiro e não têm paixão pela profissão. Eu fui sempre muito caprichoso e gostava de servir bem as pessoas. Por isso passado pouco tempo de estar em cobrador fui escolhido para integrar a equipa da fiscalização da Capristanos. Um fiscal na altura tinha que verificar a limpeza dos carros, se alguém tinha entrado sem pagar bilhete… Mas na altura não aceitei porque tinha que ir morar para o Cartaxo ou para Aveiras de Cima e deixar o café na minha aldeia, em Pé da Serra, onde estava a minha mulher durante o dia e eu ajudava à noite.É a paixão que tem pelos autocarros que faz com que ainda continue a trabalhar?Continuo nesta actividade, agora na Rodoviária do Tejo, porque vejo que os administradores gostam de mim. Isso dá-me alegria. É verdade que a idade já pesa, que às vezes me sinto cansado, mas o facto de ser querido dentro da empresa dá-me forças para continuar até que possa e eles queiram.Quais são as qualidades que um chefe de estação tem de ter?Quem tem que gerir pessoas nem pode ser muito carrasco nem pode ser extremamente simpático. Tem que saber manter o respeito. Nunca fui ditador, mas gosto das coisas feitas como deve ser. Um bom empregado gosta que as coisas funcionem bem. Só os que não prestam é que gostam das coisas abandalhadas.Parece ter uma grande dedicação ao trabalho…Nunca fiz um dia de greve na minha vida. São ideias.Já tem quem lhe siga as pisadas?Tenho um neto, João Pedro Colaço, que também já trabalha na Rodoviária do Tejo. Acho que ele tem, como eu tinha, o gosto pelos autocarros. Agora já está a trabalhar comigo em Rio Maior, depois de ter estado um tempo em Alcobaça. Agora praticamente tudo é feito com recurso a computadores. Como é que se dá com essa situação?Por causa disso já disse que podiam mandar-me embora, porque praticamente estou na estação e não faço nada. Só mando fazer e vou chamando os passageiros para entrarem nos autocarros. Mas a empresa diz para eu continuar aqui que estou muito bem, que a minha presença é muito importante. Com tantos anos de serviço deve conhecer quase toda a gente de Rio Maior…Felizmente estou bem relacionado com a população. Tenho um bom relacionamento também com a câmara e muitas das vezes sou eu que vou lá tratar das situações que envolvem a empresa. Já fui condecorado pela Câmara de Rio Maior e isso é uma coisa que nunca esqueço. Uma vida marcada pelo rigorComo era trabalhar numa empresa como os Capristanos?Os Capristanos eram os mais caprichosos e que tinham mais gosto pelos transportes. Os donos da empresa eram capazes de entrar dentro de um autocarro e passar com os dedos pelos vidros para ver se tinham pó. Se passassem por um empregado que tivesse a barba grande perguntavam se não tinha dinheiro para fazer a barba e tiravam dinheiro do bolso e davam-lhe. Eram pessoas que queriam rigor e boa apresentação. Esse rigor exigia também que andassem fardados.Até tínhamos um boné com um emblema dourado à frente que tinha que andar sempre a brilhar que até parecia ouro. Quando ia para os bailaricos levava sempre vestida a farda que até parecia um piloto da força aérea. Assim tinha sempre as melhores raparigas para dançar.Na altura as outras empresas de camionagem da região, como os Claras de Torres Novas, também eram assim?Os Claras eram uma empresa que gostava mais de ganhar dinheiro e havia mais desleixo. Os funcionários dos Claras em apresentação não chegavam aos calcanhares dos que trabalhavam nos Capristanos. Quando os Claras compraram os Capristanos notava-se bem a diferença entre os de um lado e do outro. Ainda se lembra dos primeiros dias de trabalho como cobrador?Foi quando começaram a dizer que aparecia Nossa Senhora em Asseiceira (Rio Maior) e havia muita gente a viajar para lá. Houve um domingo que só entre Rio Maior e Asseiceira havia uns trinta autocarros a transportar pessoas. Cortei milhares de bilhetes. Foi logo um grande treino.Também foi lá ver se aparecia Nossa Senhora?Naquela altura não me interessei muito. Sou religioso, tenho a minha fé, mas é raro ir à missa. É como o futebol, sou do Benfica mas não sou doente pelo Benfica.Devia ser divertido ver naqueles tempos os passageiros com os farnéis, os garrafões de vinho a entrarem dentro do autocarro…O que mais custava nem era isso. Era carregar as bicicletas no tejadilho do autocarro. Carreguei muitas bicicletas de trabalhadores que iam para o Cadaval cavar vinhas. Empoleirava-me nas escadas na traseira do autocarro, eles davam-me as bicicletas e eu metia-as no tejadilho. Era cada carrada de bicicletas.A seguir ao 25 de Abril houve muitas transformações. Como é que viveu essa mudança em Rio Maior?Não foi difícil. Aqui na estação de Rio Maior trabalhavam pessoas praticamente da minha idade e que tinham entrado nesta profissão na mesma altura. E não houve grandes problemas ao nível das relações entre as pessoas, nem nas relações de trabalho. E a nível dos transportes?Na altura, nas filiais os chefes tinham um grande poder. E após o 25 de Abril senti que não havia quem me contrariasse, quem me repreendesse. Nessa altura as comissões administrativas das câmaras também não tinham grande influência sobre o nosso sector e então pensei em implementar uma rede de transportes que servisse todas as terras do concelho.Também fez a sua revolução…Fiz com que toda a população fosse servida, apesar de nalgumas carreiras haver pouco movimento de passageiros. Mas todos tinham direito a ter transportes. E, até agora, nenhuma das carreiras que eu criei foi cancelada. O senhor Rodoviária Artur Colaço dos Santos ainda vive na casa que a empresa atribuía aos chefes de estação, por cima da antiga central de camionagem, em Rio Maior. Era no tempo em que a dedicação ao trabalho era total. Não havia horários. A qualquer momento lhe batiam à porta. Bastava-lhe ir à janela para perceber se estava tudo a correr bem. Agora que o terminal mudou para a Avenida Mário Soares o sistema mantém-se mas de outra forma. Volta, meia volta, o telemóvel toca a solicitar a sua atenção.No seu gabinete, situado no primeiro andar, com vista para o local de saída e entrada de autocarros, tem encaixilhados e pendurados na parede um texto saído num jornal, com o seu perfil, uma foto com alguns motoristas e um mapa com as rotas que a empresa faz. É ali que trabalha com o neto João Pedro Colaço. Um dos seus cinco netos. O filho Luís Manuel trabalha em Alcanena. A filha, Maria de Lurdes, em Rio Maior. Da esposa não fala. “Estamos separados há 20 anos”.Confessa que não sabe bem o que fazer quando sair da Rodoviária. Abandonou a caça há anos quando lhe mataram um cão de que gostava muito. Não é adepto da pesca, nem tem outros passatempos. Viajar nunca o atraiu por aí além. “A minha vida é a empresa. É aqui que eu gosto de estar. Quando sair, se calhar tenho que ir para o jardim conversar com os outros rapazes da minha idade”, diz com um sorriso que quer dizer, precisamente, o contrário do que afirma.Não viu Nossa Senhora da Asseiceira mas a aparição mexeu-lhe com a vidaA gravata tem o símbolo e as cores da Rodoviária do Tejo. Riscas horizontais azuis, vermelhas e amarelas. Artur Colaço dos Santos já não usa a farda que era obrigatória quando entrou para a empresa Capristanos e que tanto impressionava as jovens das aldeias do concelho de Rio Maior que iam aos bailaricos. É meão de estatura e usa óculos. Nasceu em 14 de Julho de 1931. Ficou órfão de pai aos 9 anos. Começou a trabalhar cedo. De Verão nas salinas e de Inverno no campo. Queria fugir ao destino de uma vida no campo e encantou-se pelos autocarros que via passar ao longe. Não descansou enquanto não conseguiu ver o mundo de dentro de um deles. Foi aos 23 anos que o desejo se cumpriu. Fevereiro de 1955. Não foi milagre mas houve um milagre que ajudou a sua progressão. A 16 de Maio de 1954 um rapaz da Asseiceira, uma das aldeias do concelho de Rio Maior, dizia ter visto nossa Senhora num loureiro. Todos os dias 16, a aparição se repetia. Artur Santos passou a cobrador por causa das multidões que rumavam à Asseiceira para o primeiro aniversário da aparição. O jovem funcionário da empresa Capristanos não viu a santa porque tinha que dar atenção aos bilhetes dos passageiros e à carga e descarga de mercadoria. Os autocarros não tinham malas laterais como agora. Ia tudo para o tejadilho através de uma escada situada na traseira. O pior eram as bicicletas. “Eu subia até meio, o passageiro passava-me a bicicleta e eu arrumava-a lá em cima. E eram muitas”, conta.Entra no seu Toyota Corolla branco com matrícula de 1998 e segue para as salinas. Quando nos recebeu na estação de camionagem estava com um jornal desportivo na mão. Quando saiu do carro não se esqueceu dele. Na capa uma foto de jogadores do Benfica a celebrar a eliminação do Marselha da Liga Europa. Traz também uma chave pendurada numa outra chave de madeira, muito maior, que agora funciona como uma espécie de porta-chaves mas que antes abria a porta de uma das casas típicas de madeira que comprou. O espaço é reduzido. Entramos. Era ali que se guardava o sal quando ele era pequeno e trabalhava como salineiro. Há cadeiras, mesas, dois antigos lavatórios em verguinha pintada de branco com bacias de loiça. Um catre. O espaço foi usado como tertúlia. Agora já não. “Pertenço a um grupo de almoçaristas. Juntamo-nos às segundas-feiras para almoçar. Somos entre doze e dezasseis. O anterior presidente da câmara, Silvino Sequeira, também costuma aparecer”, conta. Ao almoço revela-se um bom garfo. Ataca o frango assado com apetite e não poupa no tinto. Remata com uma sobremesa e parece notar-se algum desapontamento quando os convidados recusam um digestivo após o café. Não perde uma oportunidade de dirigir galanteios às jovens empregadas. Pelo canto do olho vai observando uma cliente bonita e vistosa que se sentou na mesa ao lado. Mais tarde, no decurso da sessão fotografia, faz questão de ser fotografado ao lado da funcionária do bar da rodoviária. O engenheiro Orlando Ferreira, administrador da Rodoviária do Tejo, que ele fez questão de convidar, brinca com ele e força-o a contar algumas histórias mais “picantes” que o piri-piri do frango. Apesar da presença da secretária, Conceição Sequeira, e do administrador, não se faz rogado. Mas só depois de os jornalistas lhe prometerem que elas não serão reproduzidas. A primeira reclamação registada no livro deixou-o doenteA história é contada pelo administrador da Rodoviária do Tejo, Orlando Ferreira. A primeira reclamação registada no livro de reclamações da empresa em Rio Maior deixou Artur dos Santos doente. “Uma reclamação é encarada por nós como algo que nos pode ajudar a melhorar mas o senhor Artur sempre pugnou por um tratamento personalizado. Ficou aborrecido quando o livro foi estreado”.Para ilustrar as capacidades do funcionário, o administrador conta a história de uma senhora que queria reclamar por causa de atrasos sistemáticos numa determinada carreira. “O senhor Artur levou-a para o seu gabinete, conversou com ela, deu-lhe razão e prometeu melhorar. Embora a empresa só tenha conseguido resolver o problema que ele tinha apresentado muitos meses depois, a senhora, passados 15 dias, foi agradecer ao sr. Artur o facto de o autocarro ter começado a chegar à tabela. Provavelmente nunca mais tinha apanhado aquele autocarro mas como tinha gostado de conversar com ele…”.
“Ia para os bailes com a farda de cobrador e até parecia um piloto da Força Aérea”

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