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Carta de Herculano aos seus eleitores

«Acabais de me dar uma demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no Parlamento: sinto que não me seja permitido aceitá-la.» — escreveu Alexandre Herculano, em 1858, aos eleitores do círculo de “Cintra”, explicando a sua decisão desta forma tão encantadora: «Se tal escolha não foi uma daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito de grande número, o que é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente, fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.Há anos que os eleitores de um círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a honra que me fizestes agora […]. Duas vezes nos comícios populares, muitas vezes na imprensa tenho manifestado a minha íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe não pertença; que por larga experiência não lhe tenha conhecido as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para distrito, e às vezes de concelho para concelho […].Durante meses, no decurso de dois anos, tive de vagar pelos distritos [..]. Pude então observar amplamente quantas misérias, quanto abandono, quantos vexames pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos rurais, como o vosso, que constituem a maioria do país. [...] vi a agricultura, a verdadeira indústria de Portugal, lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da insuficiência dos seus recursos; vi, em resultado dos erros económicos que pululam na nossa legislação, a má organização da propriedade territorial e a desigualdade espantosa na distribuição das populações rurais, precedida da mesma origem, […] vi a injusta repartição e a pior aplicação dos tributos e encargos: vi a falta de segurança […], especialmente nos campos, onde o homem é obrigado a confiar só em si e em Deus para a obter, vi um sistema administrativo mau por si e péssimo para Portugal, com uma hierarquia de funcionários e uma distribuição de funções que tornam remotas, complicadas, gravosas, e até impossíveis, a administração e a justiça para as classes populares, e incómodas e espoliadoras para as altas classes; vi, sobretudo, a falta de vida pública, a concentração do homem na vida individual e de família, que é ao mesmo tempo causa e efeito da decadência dos povos que se dizem livres; vi todos esperarem e temerem tudo do Governo central; confiarem nele, como se fosse a Providência; maldizerem-no, como se fosse o princípio mau […].E isto que vi perspicuamente, apesar de uma observação transitória, vêem-nos todos os dias, palpam-nos, e, o que mais é, padecem-no centenas de homens honestos e inteligentes que vivem obscuramente por essas vilas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, eles são vítimas da nossa absurda organização; disso a que por antífrase chamamos administração e Governo. É entre tais homens que os círculos deveriam escolher os seus representantes; é entre eles que os escolherão por certo no dia em que compreenderem que o direito eleitoral é uma espada de dois gumes com que os cidadãos estão armados para se defenderem a si e aos seus filhos, mas com que também podem assassinar-se e assassiná-los. Foi o que disse a todos aqueles, e não foram poucos, que durante a minha peregrinação pareceram confiar, senão no valor das minhas opiniões, ao menos na sinceridade delas. Interrogado acerca do lenitivo que supunha possível para os males que presenciava, indiquei sempre, não como remédio definitivo, mas como preparação para ele, como instrumento de uma reforma futura, a eleição exclusivamente local e os esforços constantes para obter, contra o interesse das facções, dos partidos e dos governos, a redução dos grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam servir de restauração à vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública do país, e de garantia da descentralização administrativa, […].A eleição de campanário é o sintoma e o preâmbulo de uma reacção descentralizadora, a descentralização é a condição impreterível da administração do país pelo país, e a administração do país pelo país é a realização material, palpável, efectiva da liberdade na sua plenitude, sem anarquia, sem revoluções, de que não vem quase nunca senão mal. Para obter este resultado, é necessário começar pelo princípio; é necessário que a vida pública renasça. […]» (Alexandre Herculano, Opúsculos – Questões Públicas, tomo II). Decorridos mais de 150 anos sobre a carta de Alexandre Herculano aos eleitores de “Cintra”, a eleição uninominal ainda não perdeu o traje do sonho. Enquanto esta não ganhar índole de realidade, alguns políticos, que não conseguiriam sequer os votos da sua própria rua, chegam ao Parlamento, cobertos pela manta de cada sigla partidária, mercê dos círculos eleitorais colectivos que ainda perduram em Portugal. Os idiotas existem para os nossos pequenos prazeres e para as nossas grandes desgraças!

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