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Herculano e o 25 de Abril

Texto de recordação da figura de Alexandre Herculano escrito por José Saramago e publicado no jornal O Diário (já extinto) em 1985 por altura das comemorações do 25 de Abril
Assinalar a efeméride, cumprir o calendário, desfilar em manifestação, gritar a palavra de ordem? E que mais? Repetir o discurso do ano passado, e do outro, e de outro, como se repetem os gestos, sem pensar neles? Lembrar, suspirando em comum, as esperanças que demos e as promessas que recebemos? Chorar sobre as torpezas e as traições? Baixar a guarda e aceitar o triunfo insolente daqueles que fizeram da política um jogo sem dignidade nem regras? Decidir que o 25 de Abril foi a última oportunidade de salvar-se Portugal, e que, falhada ela, não há mais salvação possível? E que significa salvação? Vamos, de facto, a caminho de perder-nos? O povo? O país? O regime? Está cada um de nós vencido, ou ainda firme? Desprezamo-nos, ou respeitamo-nos? Merecíamos o 25 de Abril, ou era o 25 de Abril que merecia melhor sorte? Ou outra gente? […].Todos nós fomos educados no respeito pela palavra e pela figura de Herculano, uma espécie de Moisés da História, personalidade ética e científica como poucas vezes terá aparecido por cá. […].Porém, como historiador, Alexandre Herculano haveria de saber bastante do povo a que pertencia para lhe perceber a particular grandeza: viu-o desde o princípio da nacionalidade, nos trabalhos e nos dias, nas guerras e nas descobertas, nas revoluções perdidas ou ganhas, no esforço imenso das gerações numa terra pobre e castigada. Aliás, a bem dizer, nenhum povo é pequeno, seja ele português ou espanhol, francês ou italiano, inglês ou alemão, chinês ou russo. Com o risco de me taxarem de lisonjeiro sem freio, seria capaz de jurar que o povo é mesmo a única coisa verdadeiramente grande que existe. Não será puro, nem santo, nem bom, mas é grande, não pode deixar de o ser. Então, se não estou caído em erro, direi que Alexandre Herculano, ao falar da pequenez da gente não era no povo que pensava.Em quem pensaria, pois? Se não eram afinal pequenos o pescador de Matosinhos, o camponês da Beira, o operário de Braço de Prata, ou o assalariado do Alentejo, que gente mínima mereceu o desdém de Herculano? Parece-me fácil a reposta: precisamente aquela que o fez retirar-se para Vale de Lobos, cansado, desiludido, agoniado de náusea moral: os políticos do tempo, o parasitismo oficial, os corruptos e os corruptores, esse enxame ridículo e maligno que Rafael Bordalo Pinheiro dependurou no pelourinho da irrisão para escarmento da praga e aprendizagem nossa. Essa é que era a gente pequena, e não o povo, o mesmo povo que o caricaturista mostrava pobre, roto, explorado pelos impostos, roído pela ignorância e pela superstição, vítima pacífica e inocente do descaro dos poderosos e dos seus lugares-tenentes e homens-de-mão.Que tem isto que ver com os dias de hoje, com este 25 de Abril? Tudo ou quase tudo. Não sei quantos Alexandres Herculanos se retiraram já para Vale de Lobos, mas gostaria que não usassem mal a sua autoridade, se a têm, repetindo aquela frase do Mestre dos Opúsculos num sentido que se vai espalhando entre uma burguesia que, não obstante todas as contrariedades, conservou e já reforça o seu poder económico e a sua influência política: que este povo não presta, que nós, portugueses, somos os últimos dos derradeiros, que seria bem melhor que os espanhóis tomassem definitivamente conta disto, que felizmente vamos entrar no Mercado Comum, é a maneira de nos meterem na ordem, etc., etc., etc., Não temos, e é grande falta nossa, um Bordalo Pinheiro para traçar com tinta corrosiva o retrato do actual poder, mas temos, talvez centuplicados, decerto refinados pelos avanços da ciência do oportunismo político e social, todos os modelos de há cem anos. E não soubemos ainda encontrar a maneira de nos livrarmos deles. […]Hoje é dia 25 de Abril, dia bom para pensar nestas coisas. Vivemos um tempo de luta geral. Cada hora é uma batalha de resistência, cada minuto uma escaramuça, cada segundo respira um alento novo. Talvez hoje Alexandre Herculano não se retirasse para Vale de Lobos, mesmo sendo a nossa vida política o miserável espectáculo que é. Talvez a grandeza do povo português não lhe parecesse somente como um dado histórico, mas como um exaltante acto quotidiano. De gente muito grande.(O Diário, 25 Abril de 1985)

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