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O lugar de Herculano enquanto intelectual do regime liberal e na mundividência do campo

IAlexandre Herculano foi investido do estatuto de intelectual do regime. Ser intelectual em 1832-1834 significava substituir as instituições do passado pelas liberais, mudar o pensamento e a mentalidade do país. As novas funções intelectuais foram-lhe, pois, conferidas por dois motivos: a Revolução e a Luz - o símbolo que representa a função intelectual numa situação de Revolução. Luz, para podermos utilizar um conceito do iluminismo, algo que confere ao intelectual a organicidade da mudança, utilizando a expressão de António Gramsci, numa das suas obras mais emblemáticas1. Ora, Alexandre Herculano, enquanto intelectual orgânico, era o portador dessa mudança e encontrava-se envolvido na educação das novas gerações, em organismos mais ou menos secretos, as sociedades filomáticas, um tipo de associações de transmissão de saberes, aonde se formava a mentalidade dos jovens para o novo ideal liberal, constitucional e democrático da sociedade, na época da burguesia conquistadora. Mas igualmente funções culturais, directamente relacionadas com o exercício da sua própria profissão. O Alexandre Herculano foi bibliotecário, num momento de mudança das instituições do Antigo Regime. Um bibliotecário arquivista na Biblioteca do Porto, um bibliotecário na Real Biblioteca da Ajuda, um profissional cuja função era recolher e guardar livros, organizar bibliotecas, proteger arquivos, classificá-los, fichá-los no preciso momento em que essa nova sociedade nascia, quando foi necessário haver alguém para salvar do vandalismo da época o património bibliográfico e os arquivos dos conventos extintos. Uma outra função cultural: escrever. Escrever o quê? Aquilo que era fundamental transmitir à sociedade emergente da revolução liberal, mais do que romances (indispensáveis à formação de uma cultura moderna), escrever a epopeia da origem, ascensão e tomada do poder pelo terceiro estado. Essa foi a missão especial de Herculano, a escrita da História de Portugal2. Uma vida dedicada à coisa pública numa sociedade em mudança, com todas as consequências sociais e pessoais daí resultantes, fez gerar aquela reacção ao intelectual e político urbano e a descoberta, tardia, do valor da vida individual, partilhada em família. Se esta hipótese tiver consistência, há no meu entender duas épocas intelectuais e biográficas de Herculano: antes e depois de 1864, sendo que 1864 representa a mudança definitiva de Alexandre Herculano para Vale de Lobos, tornando-se, por isso mesmo, uma marca perene da sua existência como indivíduo3. Só depois de 1864, quando essa transformação se operou em todo o seu ser é que Herculano decidiu contrair matrimónio e constituir família, casando com a sua companheira de juventude D. Mariana Hermínia Meira. O seu namoro com a irmã do melhor amigo era muito antigo. A investidura como intelectual do regime, impedira o seu casamento no momento próprio, furtando-se a um privilégio da existência. A viragem levou-o a admitir, numa carta a Filipe de Soure, que «não se pode fazer filhos e livros ao mesmo tempo». O magistério da escrita fora, segundo o próprio Herculano, uma das causas porque não se casara. A decisão de retirada para Vale de Lobos permite-lhe (re)equacionar o projecto de vida – a sua actividade de intelectual submete-se à sua existência individual, ao desejo de constituir família e ao papel que podia exercer na cultura. Depois de 1864, Herculano é já outro. Embora a decisão venha detrás, se formasse ao longo dos últimos dez anos, não fosse uma mudança brusca, os novos factos precipitaram o modo de ser e a obra de Herculano. Do ponto de vista intelectual verificamos que, antes de 1864, a produção literária é vastíssima. Mas depois de 64, atenua-se, reduz-se e esbate-se e, ao esbater-se, ganha e consolida-se a obra magna de Herculano - a Agricultura, cujo apogeu ocorre entre 1864 e 1877. Numa carta a Bulhão Pato uns anos antes, dizia-lhe o seguinte: «quando tinha 25 anos, cultivava flores e fazia versos; depois dos 35 anos [no momento em que escrevia] fabrico manteiga e faço prosa. Passados os 50 provavelmente não farei nem uma coisa, nem outra. Serei talvez um avaro ou um caturra»4. Neste ponto enganou-se redondamente. Foi o melhor agricultor português mais consequente do seu tempo. Provavelmente o menos conhecido. IIAvancemos um pouco mais. O campo, ou seja, a agricultura no seu sentido lato, fundamentou em geral sistemas utópicos de realização cultural e política assentes na economia e sociedade agrária. No século XIX esses fenómenos aparecem não apenas na França (Eugène Buret) ou na Inglaterra, (Carlyle), mas também em Portugal (Castilho), com um objectivo fundamental, salvar o mundo que importava não perder. Formara-se a noção de que o mundo estava a mudar de rumo, porque a industrialização era uma realidade imparável e contínua, em cujo processo não apenas se apropriava da cidade antiga e criava grandes cidades5, como subvertia e devorava o campo e a agricultura, enquanto estrutura de toda a economia assente na terra. Todavia, embora o processo industrializador parecesse irreversível, o mundo procurava resistir. Essa é de facto a estratégia do António Feliciano de Castilho, na obra Felicidade pela Agricultura, que pelas soluções que sugere chegou mesmo aos limiares da utopia. António Feliciano de Castilho quase que propõe a abolição do Estado, na sua cartilha, afirmando que se tudo tiver como sustentáculo a agricultura, nem são precisos exércitos ou se são precisos, são milícias de lavradores, o que é completamente diferente dos exércitos permanentes. Sociedades agrícolas eram os átomos do desenvolvimento da agricultura, cuja representação superior se faria através de um parlamento de lavradores e de um ministério da agricultura. É evidente que evasão da civitas, com toda a sua carga clássica (nesse tempo igualmente industrial), encontra-se de acordo com a velha antinomia campo-cidade, numa tentativa de superação dos males do século. Todavia, a questão que se põe é procurar avaliar e saber se o prazer que Alexandre Herculano sente pela agricultura revelado ao longo de toda a sua vida se enquadra ou não no sistema enunciado ou apenas se insere numa lógica de procura da felicidade, uma das duas vias: a «aurea mediocritas» ou a “corte na aldeia”. Ou então numa outra via, integrada na mundividência oitocentista. A “aurea mediocritas” era a via renascentista. O intelectual cansado da vida saía da cidade, metia-se no campo e vivia com a natureza. Não exercia no campo a actividade agrária. A sua postura era essencialmente virada para a contemplação, para a observação, para o debate e reflexão, para a intelectualidade. Comungando, até certo ponto da lógica da via renascentista, a «corte na aldeia», na posição de Rodrigues Lobo, era uma espécie de evasão face ao não comprometimento político, durante o domínio filipino. Era a alternativa à corte dos príncipes, numa altura em que não havia corte régia ou ela se encontrava distante, em Madrid. Pressupunha o diálogo e o debate das ideias e das coisas, procurava-se criar ou manter o espírito de cortesão, na ausência de condições para o seu exercício. Procurava-se criar forças para o renascimento, para a regeneração ou para o regresso à Corte. Nessa expectativa geravam-se os contrários, a crítica e a oposição, criando-se uma mentalidade nobiliárquica restauracionista. A atitude herculaniana é outra em relação a qualquer destas vias. Herculano não tem uma atitude contemplativa do campo, não é um poeta de idílios, nem pretende regressar a uma qualquer corte situada no campo, por qualquer impedimento urbano. É um cultor da actividade agrária, pela regeneração da agricultura como primeiro sector da economia. Os temas agrários, incluindo as ideias económicas e o amor pela natureza presentes nas concepções teóricas e práticas de Herculano, vêm até certo ponto justificar o epíteto de «solitário de Vale de Lobos», mas não da forma como se fez passar essa ideia. Herculano assume a sua retirada política, não porque estava farto dos políticos, mas porque quer dedicar-se à agricultura. Há algo de «aurea mediocritas» e de «corte na aldeia»6 na atitude de Herculano, mas há sobretudo uma radical diferença. Herculano gosta do campo, quer viver no campo, ama o campo, quer trabalhar realmente nele, com as suas próprias mãos, de acordo com a sua energia, quer produzir e aplicar novas soluções para modernização da agricultura da sua quinta (o que indirectamente significa a agricultura do país). Por isso há uma forma de ler «o solitário de Vale de Lobos», assente na cultura de cidade, e outra oposta assente na opção por Vale de Lobos, lugar de eleição do agricultor que existia em Herculano. Influência da mundividência pós-rousseauniana ou motivada pela influência da filosofia idealista alemã pós-Kant? Tratar-se-á de uma mentalidade romântica ou nasce da crise dessa mentalidade, inscrevendo-se já nas origens do realismo da 2ª metade do século XIX? Parece-nos que sim, esta última. A consagração agrária de Herculano em Vale de Lobos, nos bairros de Santarém, eis pois uma conclusão que posso extrair do conhecimento da sua actividade agrícola e da sua opção existencial. Em várias cartas Herculano chamava-se a si próprio “bairrão” ou “lavrador dos bairros”, daqueles lugares e campos. Há uma lógica nisto. Já agora, bairrão e saloio, porque antes de partir para Vale de Lobos, quando explorava a Horta do Galvão, ele também se nomeia “saloio” daquelas redondezas7. Do ponto de vista histórico a duas expressões têm significado semelhante. Andas andam associadas aos espaços agrários da época islâmica, o primeiro no bairro em Santarém, a segunda à área estremenha, a Norte de Lisboa. No seu tempo as duas expressões era usuais, saloio mais do que bairrão, mas Herculano soube valorizar-lhe a semântica, até porque ainda era um termo usual no tempo de Rafael Bluteau8. Assim, Herculano era saloio enquanto foi estremenho e passou a ser bairrão no momento em que passou a viver nos outeiros de Santarém. Bairrão e saloio são, pois, duas expressões idênticas com o mesmo significado, isto é, referente a campesinos, aldeões, rústicos, ou seja população vivendo da horticultura, da fruticultura (sobressaindo ainda a cultura da figueira), floricultura e muito particularmente da oleicultura.Os dois mundos não se chocam se avaliarmos que há na vontade do liberal criar o mundo do trabalho, aquele universo que transforma o homem num produtor e num organizador segundo as ideiais de Saint-Simom. Dominando, com uma frieza crítica, a dicotomia entre o país real e o país legal, entre o interesse material e os valores morais, Herculano soube virar as costas às intrigas e hipocrisias do poder, refugiando-se em Vale de Lobos, às Portas de Santarém, onde se constitui como símbolo de rejeição das vãs glórias, para se dedicar “à felicidade pela agricultura”. Neste subtil movimento de carácter afirmou-se como luminar da vida pública e da acção política, garantindo um lugar no panteão dos exemplos cívicos, sem renunciar à vida e à cultura. Tal como referem todos os que em si procuram exemplo de meditação, Alexandre Herculano procurou em Vale de Lobos a equanimidade para reflexão e o conforto para a criação, onde repetiu o apelo para que o povo nunca esqueça “o grande e venerando culto dos seus antepassados”.A construção da contemporaneidade passava pela afirmação do Terceiro Estado. Ora Herculano, antes de mais pertence a essa sociedade que estudou na História de Portugal, aquela que esteve na génese do Estado liberal. Como agente do presente, seria pelo trabalho e pela terra que Portugal se regeneraria. Herculano procurou cumprir esse desiderato, mas procurando a felicidade como quem pretende uma virtude e sabe encontrá-la.1 GRAMSCI, António – “Problemas Culturais”, in Obras Escolhidas, vol. II, Lisboa: Estampa, 1974, pp. 187-214.2 Penso que isso explica cabalmente o seu interesse pela Idade Média, sobretudo pela os primeiros dois séculos da monarquia afonsina, fase em que as classes populares estão em ascensão no território português.3 Herculano estava inclinado a mudar-se para Vale de Lobos, em 1859. Todavia partilhou ainda, entre 1859 e 1867, os dois espaços – o urbano e o rural. Lisboa ainda exerceu muita força, enquanto manteve as explorações da Horta do Galvão e da Arrábida. A quinta ribatejana necessitou de benfeitorias, situação que o impediu de passar radicalmente para lá. A correspondência noticia com frequência o seu movimento no território, entre Lisboa e Santarém, até que passou para Vale de Lobos, não deixando de por vezes ir a Lisboa, tratar de assuntos e negócios, embora com maior raridade.4 Carta a Bulhão Pato, in OLIVEIRA, A. j. Sardinha – Actuais Sócios Honorários da Associação Central da Agricultura Portuguesa e evocação de Alexandre Herculano que foi o primeiro”, in Lavoura Portuguesa, nº 1, Janeiro de 1961, p. 5 Manchester, na Inglaterra, era uma das maiores cidades do mundo, na década de 50, no século XIX.6 A ideia da “corte na aldeia” é assumida por Herculano nos seus serões de agricultores, tanto na Ajuda, como no Calhariz, como sobretudo em Vale de Lobos. Zeferino Cândido refere os agricultores que debatiam com Herculano nesses serões muito semelhantes aos propostos por António Feliciano de Castilho: João Anastácio Simões (de Cruz das Oliveiras), Francisco Simões (de Caselas) e Francisco Pedroso. Mas além dos citados há outros, como Manuel José Júlio Guerra, vizinho de Herculano na Ajuda, mais tarde o responsável pela obras de regularização do Tejo, quando Herculano o visita em Santarém (Cf. Cenas de um Ano da Minha Vida. Apontamentos de Viagem, Lisboa: Bertrand, 1973, pp.133-134, 202-204). Quanto aos serões do Calhariz, as cartas a Filipe de Soure, são um testemunho da plêiade de amigos liberais, interessados pela agricultura. Para Ribatejo, há já um estudo, que embora incompleto, permite inventariar “a corte” de Vale de Lobos (José Cândido dos Santos, José Filipe de Sá, Pedro Vieira Gorjão), cf. BEIRANTE, 1977, pp. 54-62. A sua correspondência permite ainda identificar amigos com quem debate as questões agrícolas em outras pequenas “cortes” de aldeia, situadas no Turcifal (António Nunes dos Reis, pai de Pedro Batalha Reis), Alpiarça (Henrique Maximiano Dulac e Duque de Palmela), Vale de Santarém (Rebelo da Silva) e Santarém (Bernardino Barros Gomes – Quinta da Ladeira) e Paulino da Cunha e Silva – Quinta da Comenda).7 Cf. Cartas Inéditas a Joaquim Filipe de Soure, p. ??. 8 Independentemente da origem etimológica da palavra, bairro em Santarém significa ainda hoje “terras de campo” a norte de Santarém. Cf. BLUTEAU, Rafael – Vocabulário Português e Latino, Lisboa: 1712, vs. “Bairro”.

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