“A minha escola primária foi o telhal de Alhandra”
Ferrer foi autodidacta e fez sucesso como cabeleireiro aqui e além fronteiras
Não foi à escola, mas aprendeu sozinho as letras e os números. Aos nove anos já trabalhava como homem de corpo inteiro nos telhais de Alhandra, mas isso não lhe roubou a vontade de saber. Inventou no cinema as legendas para dizer aos ouvidos dos meninos que, tal como ele, não tiveram infância. Distinto cidadão anónimo, autodidacta, decidido a vencer. Guilherme Joaquim Ferreira, nome que a vida lhe deu. Ferrer, nome que escolheu para a vida. Ana Santiago
Na idade em que todos os meninos vão à escola Guilherme Joaquim Ferreira foi trabalhar. Primeiro a carregar tijolos, aos oito anos, nos barcos em Vila Franca de Xira, depois de levar o almoço ao pai, na fábrica do descasque de arroz. Depois, com a jornada de um homem de corpo inteiro, oito horas de trabalho, aos nove anos de idade nos telhais de Alhandra que Soeiro Pereira Gomes descreveu em “Esteiros”. Trabalho sazonal de Maio a Outubro.“A minha escola primária foi o telhal”, resume aos 79 anos Guilherme Joaquim Ferreira. Ferrer foi o nome que escolheu para a vida profissional. Primeiro como barbeiro. Depois como cabeleireiro. Nasceu a 20 de Fevereiro de 1931 apesar de no registo do seu nascimento constar o dia 20 de Março. A mãe, tecedeira, deu à luz o terceiro filho na aldeia de Pedra de Ouro, Alenquer, mas é de Vila Franca de Xira, para onde foi levado aos oito meses de idade, que se sente filho. É o mais novo de três irmãos. E o mais atrevido. “Eu tinha vindo a mais, ficava um bocadinho de parte e tinha necessidade de puxar pela cabeça para conquistar. A ponto do meu pai me levar para a taberna e pedir: ‘um copo de três para mim e outro de dois para o rapaz que já é um homem”.Aprendeu a ler com o “Mosquito”, uma revista infantil da época. “Só entrei na escola para fazer o exame de aptidão literária para tirar a carta de condução. E mais tarde para ensinar xadrez”. Os pais repararam nas aptidões naturais do filho já ele era leitor voraz. “Oh ‘priga [rapariga], já viste que o rapaz pequeno sabe ler?”, espantava-se o pai. Não foi preciso passar pelos bancos da escola para que ganhasse vontade de aprender. Começou pelos autores conhecidos. Clássicos portugueses e estrangeiros. “Acho que o primeiro autor que li foi Erico Veríssimo. Toda a obra. E depois o Jorge Amado”. Seguiu-se Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano.Percorreu a obra do escritor francês Emile Zola e os russos Dostoyevsky, Tolstoy e Gorki. Caiu aos pés de Voltaire e aos 17 anos deu de caras com “Hamlet”, de Shakespeare. Os irmãos aprenderiam a ler mais tarde. “Eu fiz uma viagem pela cultura. Interessei-me por astronomia, antropologia, psicanálise. Acho que são os três baluartes da nossa cultura. Galileu, Charles Darwin e Freud. Para mim é importante saber de onde viemos, de quem descendemos e que mente temos”.A mãe foi acometida de uma doença. Tinha o menino 11 anos. Voltou à aldeia e lá esteve até aos 14 com os avós. Depois regressou a Vila Franca. E se fez barbeiro. A vida era má, mas Ferrer desenrascava-se. Aprendeu a caçar na aldeia e a pescar no Tejo. “Acho que tenho ensinado muita gente a pescar. Não daquela maneira. De outra”. Habituou-se a ouvir as conversas e discussões na barbearia e a fazer palavras cruzadas. “Às vezes metia o bedelho e mandavam-me calar”. Teve necessidade, aos seus 16 anos, de deixar crescer o bigode e de usar o lápis que as senhoras usam nas sobrancelhas para tapar as falhas. “Ficava com um bigodaço e ao ficar com um bigodaço as pessoas respeitavam-me. Já não era o miúdo. Era o senhor”. Bastava ler no jornal o título de um livro para o querer ler de seguida. “Ouvi falar de Hamlet e enquanto não o li não descansei”. Pesquisava nas bibliotecas e comprava alguns livros. A memória prodigiosa permitia-lhe ouvir uma canção e logo a seguir cantá-la. Multiplicar quatro algarismos por outros quatro mentalmente. Em Lisboa, aos 18 anos, foi aprender a profissão de cabelereiro de senhoras. “Fiz logo sucesso. Tinha bom aspecto e facilidade em falar embora não tivesse andado na escola”. Depois de 25 lições, dadas às segundas, quartas e sextas, foi trabalhar. Como tinha sido barbeiro cortava o cabelo com facilidade. Trabalhou no salão Rossio, esquina contrária da pastelaria Suíça, mas mudou ao fim de quatro meses para ganhar mais. Nunca mais parou. Passou pelo Estoril e foi cabeleireiro nas arcadas do parque a atender marquesas e condessas. “Os restantes que estavam aqui ainda do tempo da guerra. Viviam aqui em hotéis. Em frente às arcadas do parque. Naquela alameda do Estoril. De repente estava a tratar com aquela gente, ingleses, franceses. Adaptei-me com facilidade. Era atrevido. Tinha alguma cultura e aproveitava-a. Tinha a cultura acima da média”. Casou aos 25 anos. Já tinha um filho quando o convidaram para ir trabalhar para Moçambique. “Fui trabalhar para a alta sociedade. Mulher do governador geral, secretários provinciais, toda aquela gente era minha cliente”. Começou por conta de outrem, mas depressa comprou o seu próprio salão. Em poucos meses mobilou a casa e pouco depois reuniu a família. Chegou a ter seis salões em Moçambique. Trabalhava dez e doze horas por dia. “Num dia 31 de Dezembro comecei às 5h00 e acabei a um quarto para a meia-noite. A minha mulher dava-me a comida à boca”. Foi entrevistado várias vezes para a página feminina de domingo. “É uma profissão mais de mulheres. Sempre me apercebi disso. A mulher pode ser mais cabeleireira. É mais feminina. Na profissão há homo-sexuais, mas também há noutras profissões. Ninguém tem nada a ver com isso”.É pai de oito filhos. Sete rapazes e uma rapariga. Três estão na profissão. Baptizou-os com nomes originas como Jazão – para evitar que lhe colocassem alcunhas. Como acontece nas aldeias sempre que há pessoas com nomes vulgares e repetidos, acomodadas aos nomes que a vida lhes dá. O sofrimento dos pretos sentido por um brancoGuilherme Joaquim Ferreira – “Ferrer” – tem a tez clara, barba e cabelo simetricamente a branco e preto, sinais marcados no rosto. Os 19 anos passados em Moçambique nas duas décadas que antecederam a revolução dos cravos de 1974 fizeram-no tomar as dores sofridas de um povo de pele mais escura. Dos oito filhos, sete são cidadãos de segunda, nascidos na antiga província ultramarina de Portugal.“Quando cheguei a Moçambique ,apercebi-me que havia escravatura. 1957. Escravatura porquê? Os presos, alguns até sem razão de o serem, eram utilizados para trabalhos forçados. Tinham correntes nos pés e nas mãos. Eram metidos em camionetas. Eu ouvia que administradores do território do interior arregimentavam pretos para trabalhar nas minas da África do Sul. Era o Governo português que colocava os indivíduos para trabalhar, era o Governo português que recebia o dinheiro e era-lhes dado um montante que no final nem chegava nem para fazer uma palhota quando regressavam a casa”, conta indignado.Eram poucas as pessoas com quem podia falar sobre as injustiças que sentia. Uma única cliente, sueca, mulher de um cônsul inglês. Quando chegou a África arranjou um empregado doméstico. O João foi à escola. Fez a quarta classe. Como outros que foram seus empregados. Pedia-lhes cuidado com as conversas. “Vocês um dia vão ser livres e vão orgulhar-se do país que vão ter”, prometia-lhes.Um dia João arranjou uma menina para acompanhar o filho do patrão. Albertina tinha 13 anos. “Um dia chegámos a casa estava só o João. ‘A Albertina foi presa. A Albertina não tem papéis’, explicava o João. O patrão foi à esquadra, mas a rapariga não estava lá. “Quando voltei para casa lá estava a Albertina toda esfarrapada. Magoada, com sangue na cara, sentada no chão da cozinha a chorar e a abanar-se. Tinha sido um fulano que a levou para o mato e abusou dela”. Não esquece o que ouviu quando regressou à esquadra. “Disseram: ‘não se preocupe com isso. É uma preta’”. Eu respondi: ‘Não está dela ser preta. Está de nós sermos brancos. Os senhores são católicos? Fiquei esmagado. A coisa que mais me impressionava era a violência”.Quando Julião, outro empregado, foi acusado de “faltar ao respeito a uma senhora” por ter mandado os meninos arrumar os brinquedos foi Ferrer quem o resgatou de uma sessão de pancada. “Este rapaz que está aqui é meu empregado. Porta-se religiosamente bem. Mais: é religioso! Vai à missa. Impecável. Vocês não mo estraguem. Ameacei com a mulher do comandante da polícia. Disse: ‘vou ter uma grande conversa com ela. A D. Celeste é muito sensível a estas coisas’”.Aceitou o 25 de Abril e a independência de Moçambique como progressista assumido. “Muita gente não concorda, mesmo pessoas de esquerda, mas não, não podia ser de outra maneira. Tinha que ser muito rápido. Era um perigo a toda a hora. Quando mais depressa aquilo se fizesse melhor”. Chegou a fazer parte de um grupo dinamizador para a independência do país, mas ainda assim foi acusado de ser uma das “cobras escondidas no capim” por ser patrão.A família decidiu regressar, mas Ferrer permaneceu no país mais dois anos depois da independência. Viagens regulares para tentar amealhar algum dinheiro em Portugal. Comprava gorros de passagem pela Rússia e ouro para vender em Lisboa para onde foi a família no regresso do ultramar. Não podia trazer dinheiro. Concordou com a nacionalização, mesmo com prejuízo próprio. O cabeleireiro por conta própria foi o negócio para recomeçar na Metrópole. Outra vez. E hoje é o patriarca de um pequeno império de salões. As fotos da árvore genealógica com oito filhos e 16 netos está registada em papel A4 que guarda dobrado na carteira. São as únicas fotos que preserva. Não gosta de agarrar-se ao passado. Prefere debruçar-se nos dicionários, livros e enciclopédias. Tem mais de mil livros. Está reformado e habituou-se a viver sozinho. Dedica-se agora às pesquisas que uma vida de trabalho não lhe permitiu. O intérprete dos filmes que passavam em AlhandraNos tempos do trabalho nos telhais de Alhandra Ferrer frequentava o cinema e lia a revista que o ajudava a aperfeiçoar a leitura: “O Mosquito”. “Como os miúdos não sabiam ler as legendas dos filmes pagavam-nos o bilhete – um tostão aqui, um tostão ali”, recorda. Já em Vila Franca acontecia com um rapaz que lia as legendas dos filmes para os outros. Quando o cinema ainda existia frente à estação. Chamava-se Faísca. O Faísca ficava na primeira fila e lia para os outros. A sessão cheia. Quinhentas pessoas no auditório. E os miúdos engalfinhados no Faísca. “Uma vez ele estava a ler-nos sobre um drama. Um drama que se chamava: ‘A tortura da carne’. A partir de uma certa altura deixou de ler. ‘Óh, faísca! O que é que aconteceu?’ ‘Eh pá, não aguento o filme’, respondeu. Estava a chorar e não conseguia ler”. Ferrer fazia isso em Alhandra. “Só que eu não lia suficientemente rápido para que os outros percebessem. Então inventava. Se era uma coboiada eu calculava que ele quando puxava da pistola dizia: ‘mãos no ar, és um bandido estás preso’. Eles gostavam daquilo. Mas um dia apareceu um indivíduo da nossa idade, que já tinha andado na escola e denunciou-se dizendo que estava a aldrabar. Fiquei envergonhado e fui para outro lado”, conta. Mas Ferrer não perdeu os seus clientes. “As legendas eram muito sofisticadas para as crianças e eles só percebiam a minha leitura”. O menino que a vida fez letradoEvoca livros e autores. Clássicos portugueses e estrangeiros. Filmes. Poemas. Ruas de muitos países do mundo. Guilherme Joaquim Ferreira, nome que a vida lhe deu. Ferrer, nome que escolheu para a vida. O menino nunca foi à escola, mas a vontade de saber mais fê-lo letrado. Aprendeu sozinho a ler e a escrever. E é talvez por isso exigente para com o interlocutor. “O poema de homenagem a Galileu Galilei, conhece?”, pergunta. E a gente ouve, encantado, um verdadeiro diseur a cantar, de memória, sem mácula, as palavras de António Gedeão [Poema para Galileo]. “Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,/ aquele teu retrato que toda a gente conhece,/ em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce/ sobre um modesto cabeção de pano./ Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença. / (Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício./ Disse Galeria dos Ofícios.)/Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença”.A ironia também está lá quando Ferrer fala na Igreja em que não acredita. Chama-lhe canalização. “Nunca entrei no esquema, nem na canalização. Ou melhor fui obrigado a entrar senão não podia fazer nada. Entrei e sai. Entro e saio quando quero”. É um progressista assumido. Defensor do desenvolvimento, do aperfeiçoamento, da evolução, da superação, opositor do conservadorismo anacrónico e repressivo.“Já leu Hamlet?”, volta a indagar. A dada altura, Hamlet, que quer vingar-se da morte do pai, diz para Ofélia. “Vai para um convento. Não queiras ser mãe de pecadores. (…) Eu que sou razoavelmente honesto podia acusar-me de tais coisas. Excessivamente orgulhoso, vingativo, ambicioso, assaltado por mais tentações de pecados do que pensamentos para os ouvir, imaginação para lhes dar forma, tempo para ceder a eles. Nós somos todos uns refinados patifes...”Cita Shakespeare a propósito do racismo. “Nós temos instintos como têm os outros animais. Andamos disfarçados, mascarados. Somos capazes de muito coisa para nos defendermos com muita perversidade”, explica já muitos dias depois de ter lançado uma pergunta para o auditório do Museu do Neo-Realismo: “Para quando o homo-humanos? Já somos sapiens... Para quando o homem que se preocupa como o outro?”
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