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“Os políticos servem-se da justiça para a luta política”

“Os políticos servem-se da justiça para a luta política”

António Gaspar é juiz criminal e responsável pelo Tribunal de Santarém

O juiz do primeiro juízo criminal do Tribunal de Santarém revela nesta entrevista alguns pormenores da justiça que muitas vezes passam ao lado dos cidadãos. Defensor da profissão, dos tribunais, António Gaspar diz que um julgamento tem semelhanças com as cenas teatrais onde se desfia o novelo que é a vida dos cidadãos. Refuta a ideia de que os juízes fazem pouco e considera que a actividade política não devia servir-se das decisões dos tribunais para os seus jogos. António Palmeiro

Costuma ir para os julgamentos com um computador portátil. Esta é uma imagem de modernidade nos tribunais pouco habitual…É um meio auxiliar que utilizo e que me faz poupar algum tempo, às vezes bastante. O velho hábito de tirar apontamentos para o caderno tem que ir sendo substituído pelos meios informáticos. Apesar de corrermos o risco de existirem avarias nos computadores. Não tem medo que lhe roubem o computador e se possa ter acesso a informações confidenciais?Não! O computador que utilizo é pessoal e os dados que recolho são guardados em equipamentos pessoais que protejo.Nunca vi um juiz a utilizar um portátil nas audiências. Parece que há uma resistência dos juízes à utilização dos meios informáticos.Tive que fazer uma adaptação a este meio. Não estava preparado. E esta preparação não é por sabermos escrever no computador, mas pelo facto de conseguirmos conciliar o escrever no computador e o estarmos com atenção ao que se está a dizer. É por causa disso que os seus colegas não utilizam?Não sei. Acho que é uma questão de hábito e facilidade com que podemos ou não utilizar os meios informáticos. No meu caso tive alguma facilidade de adaptação. Também costuma participar em actividades da comunidade, como em procissões religiosas, o que contraria aquela imagem que se tem de os juízes serem pessoas distantes.Essa era a imagem que se tinha num passado, não digo muito longínquo. Hoje já se vêem juízes, magistrados, em manifestações culturais e recreativas. E acho que isso não representa incompatibilidades ao nível da nossa função profissional.Mas já se deve ter sentido limitado…Sempre senti desde cedo que tenho capacidade de distinguir as coisas. E no acto de exercício de funções consigo a distanciação necessária para poder julgar em consciência. Há tribunais na região que distam uns dos outros menos de dez quilómetros. Essa proliferação faz sentido?Visto na perspectiva da proximidade da justiça ao cidadão não há prejuízo. O problema é que a para além da justiça hoje ser vista como um serviço ao cidadão é também influenciada pelos factores económicos. Numa perspectiva económica, a existência de tribunais muito próximos causa aumento de custos que prejudica a qualidade. Como tudo na vida é necessário encontrar pontos de equilíbrio para que não existam tribunais próximos sem necessidade e os que existam sejam suficientes e adequados às necessidades. Temos o caso da criação do Tribunal de Almeirim.Temos que avaliar se o trabalho que é feito está de acordo com as necessidades. Este tribunal foi criado com um condicionalismo. As instalações continuam a ser provisórias, os meios continuam a ser provisórios. Faz sentido a existência do Tribunal de Almeirim, mas fazem muito mais sentido as alterações que devem ser introduzidas nos meios que este tem. É necessário ser instalado em instalações dignas e com pessoal necessário. As instalações do tribunal de círculo, na capital de distrito, também já não são muito dignas…Entre 1980 e 2000 houve um grande aumento no número dos processos nos tribunais. E nesse período não se fizeram as adaptações necessárias. A justiça é o parente pobre da política e das prioridades dos Governos?Há uma perspectiva economicista. Mas temos que nos entender numa questão. A justiça é um serviço ao cidadão como é a saúde ou a educação e que são fundamentais num Estado de direito. Mas os tribunais também devem ser sujeitos a uma avaliação de eficácia. Só que o resultado estará sempre condicionado aos meios que se colocam ao dispor da justiça. Porque concluir muitas vezes que o resultado é mau sem se ter em conta os meios empregues é no mínimo injusto. Recentemente passou a ocupar o cargo de presidente do Tribunal de Santarém e tem a função de gerir o espaço e as questões administrativas. Passou a dormir menos? Não, mas passei a dedicar mais tempo às questões que têm a ver com o funcionamento do tribunal. Isso não me tira o sono porque tenho a excelente colaboração do secretário do tribunal e tenho uma excelente relação, aberta, permanente e cordial, com os meus colegas. O que é preciso melhorar neste tribunal?Gostava que o tribunal fosse dotado de ar condicionado. Não é um luxo, mas é necessário para melhorar as condições de trabalho e também do bem-estar do cidadão que tem que vir ao tribunal. Os problemas do tribunal resumem-se à climatização?Sabemos que há grandes restrições nos quadros de pessoal e isso também se sente aqui. Neste momento há um número grande de vagas e gostava de preencher todos os lugares em aberto para funcionários. Frequentemente vou lembrando o ministério desta necessidade. E outra é a criação de um juízo de instrução criminal. Santarém também é dos poucos distritos que não tem um tribunal de família e menores. Têm-se esquecido?Os critérios para a criação destes tribunais baseiam-se no número de processos. Não quer dizer que Santarém não tenha tido um número que o justificasse. No entanto há políticas de prioridades que condicionam essas criações. Temos zonas com maiores necessidades que Santarém, como é o caso de Vila Franca de Xira onde já está instalado. Acredito que o momento de Santarém está próximo.Ainda acredita em promessas?Tenho sentido interesse das entidades que contacto em olhar Santarém com outros olhos e de a dotar dos meios de que carece. Porque é que há uma opinião generalizada de que os juízes trabalham pouco?Porque é isso que é informado, noticiado, muitas das vezes com uma grande carência de informação objectiva e com grande oportunismo. Quando se divulgam informações sobre os órgãos de soberania que são os tribunais, estas devem ter um tratamento profundo e muito cuidado. Os tribunais são órgãos de soberania e parece que isso incomoda actualmente muita gente. Ou seja, os juízes incomodam os políticos…Os juízes incomodam todas as pessoas a quem dirigem as suas decisões. E hoje são mais mediáticos os casos em que intervêm políticos. Quando aparecem cidadãos que desempenham funções públicas é evidente que a luta política acaba por se servir daquilo que os tribunais decidem. Não são os tribunais que se servem da luta política. A actividade política serve-se muito da actividade judiciária e não devia ser assim. Está a falar também da separação de poderes?Esse é um princípio que actualmente muito se apregoa mas muito se esquece. As pessoas hoje afirmam-no quando têm interesse e esquecem-no quando têm deveres a cumprir. Já julgou algum caso com o qual ainda hoje se sinta chocado?Julguei um caso há uns anos de um professor do ensino secundário que matou um homem com 18 facadas, cinco delas no coração e depois atirou-o completamente nu de uma janela de um quarto andar. Não deve ter sido fácil lidar com essa situação…A distanciação é possível, o que aumenta é a ânsia de saber o porquê. Conseguiu-se chegar a uma causa que pudesse estar na origem daquela situação, mas não completamente às razões profundas daquela atitude. Temos técnicas no âmbito da psicologia judiciária que nos ajudam muito a perceber os outros e técnicas pessoais que vamos aperfeiçoando para podermos viver normalmente para além dos casos. A culpa da morosidade da justiça é de todos De quem é a culpa da morosidade da justiça: dos juízes ou dos advogados?Há vários factores que determinam essa morosidade que abrangem os juízes, advogados, funcionários… É uma culpa repartida por todos. Mas hoje também há outros factores uma vez que houve uma aposta legislativa para reduzir essa morosidade e essa aposta não conseguiu os objectivos. Quando um advogado junta um requerimento no início de um julgamento quando o podia ter incluído no processo há meses, não fica irritado?Apenas aplico a lei e decide-se se é de aceitar ou não. Quando vem um requerimento no último dia temos que verificar se cumpre o prazo, se tem interesse para o caso. A morosidade é uma consequência de vários actos ao longo do processo. Por que é que se marcam vários julgamentos para a mesma hora e dia quando se sabe que nem metade se vão realizar?Antes, além do funcionário judicial havia o oficial de diligências que fazia o trabalho externo e no tribunal chamava as pessoas para a sala de audiências. Hoje só há o funcionário judicial e se o juiz marcar uma audiência de hora em hora este vai ter que sair da audiência de hora a hora para fazer as chamadas dos processos.Para comodidade da justiça prejudica-se o cidadão.Ao cidadão também lhe marcam uma consulta às nove da manhã e só é atendido ao meio-dia. A questão está na motivação que leva as pessoas aos lugares. À justiça nunca ninguém vem de livre vontade. Isto porque nós ainda não temos a cultura da cidadania e do Estado de Direito. O Direito para as pessoas devia ser tão importante como a Saúde e a Educação. E a lei concede uma compensação monetária pelas perdas que a testemunha teve por passar por exemplo uma tarde ou um dia no tribunal.Os tribunais começaram a abrir-se mais às comunidades, mas ainda são instituições fechadas, distantes do povo. Do que é que os agentes da justiça têm medo?Não creio que actualmente essa distanciação seja muito grande. Hoje todos os dias se fala da justiça, dos tribunais e de casos concretos na comunicação social. O problema que ainda se vive na instituição é o procurar conseguir o equilíbrio entre os direitos e os deveres. Ou seja a questão do segredo de justiça, a questão do dever de reserva dos magistrados e o direito à informação. É essa conjugação que muitas vezes é difícil de conseguir. E é nessa dificuldade que residem algumas reservas que muitas das pessoas que trabalham nos tribunais ainda retêm. Mas é importante que as pessoas saibam o que se passa nos tribunais. As pessoas hoje têm uma grande vontade de saber o que se passa na justiça. E o que se passa na justiça é importante para as pessoas, apesar de depois haver uma contradição quando essas mesmas pessoas dizem que a justiça não vale nada. Mas se é assim, por que é que se interessam por ela? Há a procura de uma coisa que se tem por importante, mas que depois se despreza, se desvaloriza, quando não se devia. O problema está na forma como se divulga?O facto da justiça dever estar mais próxima do cidadão não significa que seja devassada, de modo a que tudo o que se passa na justiça seja como se passa numa casa de espectáculos, de diversão.Mas um julgamento é uma representação quase teatral…A audiência em si é uma encenação que tem actores. O impulsionador desta ideia nos anos 80 foi o conselheiro Laborinho Lúcio e na altura isso gerou uma grande polémica. Ele utilizou o teatro como forma de colocar em cena o treino da audiência, para fazer experimentações. E há de facto semelhanças com o teatro, porque é uma cena que está voltada para o espectador. Portanto os juízes não teriam problemas em abraçar a carreira de actores…Não me sinto um actor, apenas um elemento que faz parte do conjunto de pessoas que têm um trabalho que tem similitudes com a cena teatral. A audiência é teatral no aspecto em que se discute a vida do cidadão, mas na procura dos seus direitos e deveres enquanto no teatro o final é diferente.Já disseram que a sala de audiências é o local onde mais se mente. Concorda?É o sítio onde tudo se diz e tudo não se diz. Há silêncios, discursos, depoimentos. O mentir muitas vezes não é só por palavras. Pode ser por gestos, por omissões, por muitas coisas. O que procuro não é saber onde está a mentira mas a verdade. E nesse percurso é evidente que vamos encontrando algumas mentiras. A experiência de vida de um juiz é importante na tomada de decisões?A experiência não é pela sua quantidade mas pela qualidade. E essa qualidade vai-se adquirindo ao longo dos anos e tem que ser enriquecida com o voltar de olhares para a dinâmica social. Um juiz com mais anos de trabalho é melhor juiz…Nem sempre, pode não ser, mas tem obrigação de o ser. “O apoio da minha mulher tem sido muito importante” António Gaspar nasceu há 54 anos no Cartaxo. Na juventude queria ser médico e a maioria dos seus colegas do sétimo ano do Liceu Sá da Bandeira, em Santarém, acabou por seguir medicina ou enfermagem. Perdeu-se um médico, mas ganhou-se um juiz que se apaixonou pela profissão quando começou a contactar com a justiça enquanto funcionário judicial. Quando terminou o sétimo ano de escolaridade foi trabalhar para Lisboa, esteve como funcionário no Tribunal da Boa Hora, depois foi colocado no Palácio da Justiça e passados três anos foi para o Centro de Estudos Judiciários (CEJ).Foi quando trabalhava no CEJ que resolve voltar a estudar e ingressa no curso de Direito, que concluiu em 1989. Quando iniciou o curso já era casado e tinha um filho. Diz que a sua mulher tem sido uma grande companheira e um pilar na sua vida. “Consegui fazer o percurso académico e profissional devido a uma ajuda muito preciosa da minha mulher que é uma pessoa sensacional e que me ajudou muito. Sem ela não era possível fazer isto”, realça emocionado o juiz do primeiro juízo criminal do Tribunal de Santarém, onde está há sete anos. No seu percurso profissional passou pelos tribunais de Loures, Almeida, Rio Maior e Matosinhos. Recentemente passou a ter mais responsabilidades no Tribunal de Santarém, acumulando as funções de presidente do tribunal, cabendo-lhe gerir as instalações e os recursos humanos. Evitou sempre ir para o tribunal da sua terra natal para ter uma distanciação da realidade onde vive. Tem dois filhos, um de 15 anos e outro de 24 anos. Nenhum quer seguir as pisadas do pai. Porque, diz António Gaspar, eles “têm visto o que tem sido a vida do pai enquanto juiz, o peso da responsabilidade e a necessidade de dedicação quase total à profissão”. Costuma analisar processos em casa, aos fins-de-semana, mas consegue sempre arranjar tempo para ajudar o clube do seu coração, o Ateneu Artístico Cartaxense, onde praticou ténis de mesa. “Temos o dever de cidadania de ajudar as colectividades”, sublinha.Um dos prazeres da sua vida é comer. Costuma organizar encontros com amigos que foi fazendo ao longo da vida. Costuma chegar ao tribunal às 08h30 e sai por volta das 20h00. Para os que dizem que os juízes chegam tarde e fazem pouco, responde que só dizem isso porque não vêem grande parte da actividade do juiz. Uma parte do trabalho do juiz é de gabinete, de isolamento. Também gosta da jardinagem e tenta sempre estar o máximo de tempo possível com a família. Diz que os filhos também têm sido importantes na sua carreira.
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