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O menino burguês que lutou pelos ideais de esquerda

O menino burguês que lutou pelos ideais de esquerda

José Ferreira, antigo comerciante, activista, cidadão atento e participativo de Vila Franca

José Ferreira nasceu numa família de comerciantes abastados de Vila Franca de Xira, mas trilhou um caminho mais à esquerda. Foi activista cultural e político. É hoje um cidadão participativo que mantém o mesmo olhar crítico sobre a cidade onde vive.

Nasceu num meio favorecido, numa família burguesa de comerciantes, mas cedo despertou para os ideais de esquerda. O que o marcou nesse sentido?Vivia um pouco numa redoma de vidro, mas depois na escola, fundamentalmente em Vila Franca, através de algumas relações de amizade da famosa secção cultural da União Desportiva Vilafranquense (UDV) - que foi uma grande escola de vida para muita gente - fui despertando para essas questões. Fui levado a olhar para a vida de outra forma e mais tarde a ter alguma actividade política e cultural. Não consigo desligar as duas coisas. Mas também tem que ver com questões temperamentais. As injustiças sempre mexeram comigo.Vivia-se um tempo de fascismo…A nossa forma de ver e de pensar era muito condicionada pelos jornais e pela escola que tinha um ensinamento repetitivo e parcial em defesa do Estado Novo. O conceito de liberdade e de escolha surge mais tarde. Nos anos 60, na altura em que o Salazar cai, e entra o Marcelo Caetano, começo a despertar. Tudo isto coincide com grandes mudanças no mundo. O movimento hippie e a música que vem dos Estados Unidos e Inglaterra é fundamental. Cria uma rebeldia contra o statuos quo. O Maio de 1968 de Paris também nos faz pensar. Coincide com a primavera marcelista que permite que venha alguma coisa nos jornais. Temas que aproveitávamos nas discussões. E surgem as famosas eleições de 1969 e a CDE [Comissão Democrática Eleitoral], um movimento importante. Tive uma participação activa nesse ano. Em Vila Franca e em Lisboa. A que nível foi a sua participação em Vila Franca de Xira?Estive numa reunião em Vila Franca de Xira enviado por uma organização que era o Maesl (Movimento Associativo do Ensino Secundário de Lisboa). Essa reunião foi num famoso colectivo no Bairro do Casi, um bairro ligado à Igreja, ao pé do Hospital, o número 34. Era um sítio de convívio, onde se cantava e onde também se discutia muito. Havia uma grande efervescência política. Era uma reunião sobre como se iriam reorganizar ali para o futuro. Já tinha lá ido a polícia. Nós fomos oferecer os nossos préstimos.Também esteve ligado à secção de cinema da secção cultural da UDV.Íamos de comboio para Lisboa buscar filmes à embaixada da França e à embaixada do Canadá. Alugávamos a sala do Cine-Teatro Vila Franca, onde é hoje o centro comercial, e fazíamos projecções. As projecções eram antecedidas ou seguidas de debate. Lembra-se de alguns dos filmes que passaram?Eram filmes do neo-realismo italiano. Lembro-me de ver “Ladrão de Bicicletas” com a sala de cinema completamente cheia. E o cinema levava mais de mil pessoas. Dos filmes rotineiros chegámos a fazer ciclos por autores. Dos italianos mais importantes, como Fellini. Era tudo vocacionado para o neo-realismo?Não só. Também havia cinema francês. Nouveau cinéma. Godar. E depois também até os clássicos americanos. John Ford. Como eram estas viagens para Lisboa para ir buscar os filmes? Era sempre uma aventura, mas as coisas eram facilitadas. As pessoas nas embaixadas, perante o nosso regime, também tinham um apreço especial por esta malta que tinha esta actividade num país tão cinzento. Mas não era uma actividade proibida?Não era proibida. Era vigiada. Eles sabiam muito bem que isso tinha um potencial porque os filmes eram comentados. E nós fazíamos prelecções à volta do filme. O filme era explicado. Lembro-me que houve um ciclo sobre economia e tive que contactar o Sérgio Ribeiro. Foi deputado europeu do Partido Comunista. Era já um nome distinto. Economista num laboratório em Lisboa. Fui lá para o convidar. Fui recebido pela secretária. Eu era miúdo e estava a ver que aquilo tinha sido um grande equívoco, um homem ali a trabalhar num sítio daqueles e ser convidado para uma sessão obscura. Mas vi que tinha acertado. Como é que convencia os seus pais para poder participar nas actividades?Não os convencia. Havia também uma certa clandestinidade na nossa casa. Tinha problemas familiares?Tinha conflitos familiares e com pessoas ligadas à amizade dos meus pais. Sempre tive uma inclinação um bocado humanista. A actividade acontecia de noite?De noite já bem noite para não sermos vistos. Distribuímos papéis pelas caixas de correio e fazíamos pinturas de parede. Era pincel e lata. De madrugada com vigilância.Cheguei a pintar no muro junto à minha casa o símbolo de pacifismo que era a corda com as três derivadas. Havia colagem de cartazes. Havia reuniões numa pequena garagem na zona da barroca. Um senhor de grande coragem emprestou-a para a delegação de Vila Franca da CDE.Como é que morando na casa dos seus pais conseguia gerir esses conflitos?Esses conflitos existiam. Eram conflitos geracionais que não eram só em relação à política. Tinha o cabelo comprido o que na altura era uma ofensa. O meu pai era uma pessoa muito tolerante. Os tempos é que eram outros. Havia uma grande pressão por causa do meu comportamento. Era um comerciante antigo. Toda a gente o conhecia. E um dia o seu pai foi chamado à PIDE.Foi por causa de um folheto que fizemos do Maesl. Um contínuo que era da PIDE apanhou-me com montes de papéis que contestavam o pagamento de uma actividade. Era um acto de grande subversão para a época apesar de ser hoje quase uma coisa insignificante. O meu pai, que até era uma pessoa ligada ao regime, foi chamado à PIDE e teve que jurar por honra dele que eu nunca mais me metia nisto. Claro que não cumpri. Frequentou a escola pública com outros meninos. Muitos andavam descalços. Ainda hoje falo nisso. Andei em três escolas em Vila Franca de Xira. No Casi, orfanato do padre Moniz, havia duas salas reservadas à escola pública. Eu e um irmão meu mais velho andámos nessa escola. O contraste era enorme. Os órfãos viviam muito mal nessa fase. Pé descalço, roupas rotas e a própria alimentação não era de grande qualidade. Era um grande choque ver os meninos de famílias bem vestidos e bem cheirosos a levar um lanche. Chegávamos a levar grandes tareias para nos tirarem o lanche. Mudei para a Escola do Adro e do Bacalhau. Viam-se os miúdos a levar livros em sacas de serapilheira. Tive a dada altura um professor que era o sinónimo do que era o Portugal daquele tempo. Os filhos das pessoas de Vila Franca com mais posses eram tratados de maneira completamente diferente dos pobres, os tais do pé descalço. Esses que já tinham uma discriminação à partida porque os pais eram analfabetos.Foi a primeira vez que sentiu diferenças.Depois andei na escola preparatória. Tínhamos religião e moral. Um outro padre que foi nosso professor também castigou fortemente um aluno porque era protestante. Isso funcionou para mim como uma mola, pouco antes de começar a andar com a malta da secção cultural que era muito politizada que lia Gorki. Aos 14 anos li um livro que se chamava “Porque não sou cristão” de Bertrand Russel. Teve que ver com a experiência desse fulano que era um desgraçado nas mãos do padre.Comerciante por herançaJosé Ferreira, 59 anos, comerciante por herança, pertence a uma geração burguesa de Vila Franca de Xira, onde nasceu. Desde cedo o menino, tocado pelas diferenças e injustiças, decidiu militar pelos ideais de esquerda. Mesmo contra a vontade da família.Frequentou o curso comercial na escola Veiga Beirão, em Lisboa, mas não chegou a ir à faculdade. Seguiu-se a tropa. No 25 de Abril estava de serviço em Timor. Experiência que o marcou profundamente. Regressado de Timor continuou a ajudar o pai no estabelecimento, na casa de ferragens, ao lado do chave de ouro, que vinha do tempo do avô, 1902.Já na Metrópole foi activo do Movimento Pró Timor e lutou para angariar verbas para luta. Foi uma militância apaixonante. “O Estado português abandonou Timor à sua sorte. Timor esteve fechado. Ninguém sabia o que se passava lá dentro”, desabafa. Os massacres visíveis criaram uma solidariedade nacional que José Ferreira já tinha perdido no 25 de Abril porque não estava cá. A seguir ao 25 de Abril integrou a comissão que transformou o Casi em Centro de Bem Estar Infantil de Vila Franca de Xira. Está também ligado à Associação Promotora do Neo-Realismo e à Cooperativa Alves Redol. Tem duas filhas, de nove e 31 anos. Cultiva a amizade. Adora a mulher e as filhas, mas diz que tem uma espécie de família alargada. Convive bem com a sua figura e mesmo entre amigos chamam-lhe o Zé Gordo. “As pessoas dizem que os gordos são divertidos, mas conheço gordos que são impossíveis de aturar”, diz a brincar. Esteve ligado ao Movimento Esquerda Socialista, mas actualmente é militante do Bloco de Esquerda. Pertence ao partido não com uma intenção partidária, mas porque gosta do Bloco enquanto movimento que federa várias formas de pensamento. Adora discutir política. O debate é o que mais falta hoje em dia, enfatiza.“Sem caminho-de-ferro Vila Franca de Xira deixava de existir”Pertence à Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo.Ainda pertenço, mas o grande dinamizador - a alma mater - é o António Redol. Dedicou a sua vida a este museu. É um teimoso extraordinário. A associação existe, mas o museu está consolidado. Entre o bom e o mau… Há algumas coisas com as quais concordo. Outras com as quais discordo.Discorda com o quê?É um museu muito fechado. Tem muitas actividades. Algumas incríveis, traz gente interessantíssima do sector intelectual ligada à literatura e à pintura, não só da corrente neo-realista, mas não há muita divulgação. Por outro lado, quase parece uma contradição, acho que a direcção do museu tem feito um bom trabalho ao nível de visitas das escolas. Sou uma testemunha privilegiada porque moro ali em frente. Para o ano há dois centenários – duas pessoas fundamentais do movimento neo-realismo – e espero que a Câmara de Vila Franca de Xira agarre nisto em força e faça uma coisa finalmente em grande e não só para elites. É o centenário do nascimento de Alves Redol e Manuel da Fonseca. Não é preciso dinheiro para fazer grandes coisas. É preciso imaginação, abertura ao exterior e preocupação. E não fazer sempre a mesma coisa. Há muita obra do Redol escrita sobre Vila Franca. O cenário está feito. Não é preciso construí-lo. É só mostrá-lo.O argumento é que as pessoas não aderem muito às iniciativas. As pessoas antes querem ir à bola. Sei porque vou lá muita vez e muitas vezes está lá pouca gente. É verdade, mas às vezes há uma grande descoordenação não da parte do museu, mas da parte da câmara. Já é difícil arranjar públicos para estas coisas e às vezes acontecem duas e três coisas ao mesmo tempo para dispersar ainda mais. O concelho tem 140 mil habitantes. Há matéria-prima. Existem condições. Tem que ser feito trabalho à volta das pessoas e não é só no centro de Vila Franca. Há uma clientela cada vez mais reduzida porque as pessoas estão mais velhasTambém integra a Cooperativa Alves Redol.Sim. Era um projecto que achava que estava moribundo e afinal continua. Leva as pessoas ao teatro, traz convidados e organiza muita coisa com a associação promotora, no Club e até no café. São actividades que não se fazem no museu. Por opção do museu.Já vos foi recusada alguma coisa no museu?O museu tem uma atitude com a qual estou de acordo e que defende que o museu não pode ser o clube recreativo de uma terra. O Museu do Neo-Realismo não é de Vila Franca, é nacional, mas dentro deste âmbito acho que há coisas que se deviam lá passar. O lançamento do manifesto da memória da secção cultural da UDV podia ter sido feito no museu. Já chegou a auto-intitular-se como doméstico. Convive bem com isso. Como vê as questões da igualdade?É uma luta desde há muitos anos. Esta é uma terra de alguma tendência marialva. Sou a favor da igualdade de género e de todas as igualdades. A história das homofobias também se sente aqui. Sou um velho solitário. Até cheguei a estar envolvido numa questão muito complicada aqui há uns anos em Vila Franca de Xira. Duas pessoas que eram professoras foram acusadas de estarem envolvidas pelo pai de uma aluna. Eu tomei uma atitude pública de defesa. Aquilo parecia uma caça às bruxas. Ainda por cima era falso. Quando se fala da igualdade a violência doméstica vem à baila.É uma coisa que me preocupa. A questão da violência tem a ver com uma questão geracional, educacional e cultural. Essa violência existe e se calhar vai aumentar porque a vida está mais difícil, é mais amargurada e a violência sai-nos para fora. Não sou politicamente correcto. Acho que todos temos laivos de coisas estúpidas. Não somos puros. A pressão é grande. Cada vez tenho mais amigos e pessoas conhecidas com problemas do foro psicológico. A presidente da câmara é preocupada com estas questões - apesar de discordar com ela em muita coisa – mas já devia existir uma casa de abrigo em Vila Franca de Xira. Ajudo e contribuo para uma casa que existe em Lisboa. O que neste momento me começa a preocupar é a história dos velhos. Isso é indiferenciado. A vida não permite que alguém tome conta. Já não há um vizinho, uma prima. Vai a corridas de toiros?Gosto mais das corridas em Espanha e lamento que as corridas em Portugal sejam só a cavalo. A corrida tradicional que tínhamos, por exemplo, na feira de Vila Franca era a corrida mista. Na minha juventude havia em todo o país as dicotomias Sporting/ Benfica. Em Vila Franca a questão era saber quem era melhor: José Júlio ou Mário Coelho. É um sector não muito querido aos militantes de esquerda.A festa dos toiros em Vila Franca não tinha a mesma conotação que tinha em outros lados. Havia por exemplo o toureio apeado que vinha do povo. O grupo de forcados, quando é refundado em Vila Franca, tinha no seu interior algumas pessoas que até eram pessoas de esquerda e tinham esse comportamento anti-fascista e que superava o lado marialva.Como olha hoje para esta Vila Franca mais cosmopolita?Não sei se é cosmopolita. O cosmopolitismo mostra-se como uma forma de viver menos provinciana. Não sei se isto é saudosismo ou não. Não digo no meu tempo é que era bom, mas as pessoas da minha geração sentem falta da ligação entre as pessoas que existia. A actividade cultural era cosmopolita, era avançada. Por isso é que o que acontecia em Vila Franca de Xira era badalado em todo o lado. Lembro-me que em Lisboa, em certos meios, dizia que era de Vila Franca e chamava a atenção. Era uma terra falada.Hoje Vila Franca é apenas conotada com o meio suburbano.Falam disso e com razão. É uma cidade satélite pela força das circunstâncias. Por permissão dos vários poderes que cá estiveram. Não acuso só este. Ainda há tempos deixaram ir abaixo a sede dos combatentes da Grande Guerra. Não era património nacional, mas era municipal. Deitaram abaixo a primeira escola mista que existiu em Vila Franca. Está a acontecer o mesmo ao posto da GNR, a primeira escola feminina de Vila Franca. Fez-se muita asneira. Esta terra não defende as poucas coisas que tem. O rio não é defendido. Estão a fazer a zona ribeirinha, mas não se projecta essa ligação. Fala-se de enterrar o caminho-de-ferro, mas sem caminho-de-ferro vila franca deixa de existir. Não há dinheiro que chegue para fazer uma coisa destas. Para enterrar um pouco no terreiro do paço custou uma fortuna. Mais vale criar acessos. O caminho-de-ferro está lá. A gente precisa dele. Até devia haver mais caminho-de-ferro para não ir tanta gente pela auto-estrada. Façam barulho para haver mais autocarros. Quem vive no Bom Retiro está desgraçado. Tem que ir de carro. O dia em que a PIDE cancelou um debate de Saramago na cidadeNo dia em que o escritor José Saramago foi convidado para um debate organizado pela secção cultural da União Desportiva Vilafranquense a PIDE cancelou a sessão que marcada para o salão do velho edifício dos bombeiros, no centro da cidade. Foi em 1968. Era uma sessão pública e anunciada. Veio a polícia e a multidão foi dispersada. A sessão foi proibida, mas um grupo conseguiu reunir-se na velha sede da União, perto da estação de caminho de ferro. “Fizemos a reunião lá clandestinamente”, recorda José Ferreira, um dos activistas culturais de então. “Na altura o Saramago não era uma figura conhecida, mas tivemos cá outras”, lembra. Saramago já era então conotado com o Partido Comunista, mas os corpos sociais da colectividade eram também pessoas que já estavam ou viriam a estar mais tarde ligadas ao PC.
O menino burguês que lutou pelos ideais de esquerda

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